A vida não se esgota

A vida não se esgota
nem na ânsia que quer seu fim
que principia seu eixo
de sentido sem rota-
a vida brota
da morte provisória
de sua queda cotidiana

Não se esgota a vida
em apetites que se nutrem
– verdade, beleza, felicidade-
quais fomes que se devoram
em sua insaciedade
e te fazem querer sentir
o paladar do que te engole

Não se esgota o desejo
na pele de um corpo
que quer tocar a sede
de uma beleza que jorra
para além do que a fome implora

Não se esgota o espírito
que se quer corpo, carne
para aquém do além
que o escora

Não se esgota a ideia
na ação que trai a intenção
Não se esgota a traição
fiel à dissolução
do real que se derrama
e evapora
chovendo impermanente
promessa de aurora.

Transborda a vida
por todo onde
vida não se contém
por fugas se esparrama-
por impossível
a vida aflora.

Da natureza

Todo amor é inventado.
Nem menos inventado
porém mais sublime
que o que não é criado.
E o que não é criado?
Por natural, uma árvore:
aparência filtrada
pelo olhar humano
que a inventa:
arquitetura da aparência
de um conceito tocado.
Por natural, um prédio:
aparência idealizada
filtrada pela ação
de construção
da ideia:
conceito materializado.
Todo amor é inventado.
Eu te crio na projeção
do real que me fabrico
onde te espelho na busca
do toque de nossa fundação.
Todo amor é inventado.
Dado o ideal de sua criação
que se esconde- de mim, de você-
em sublime intenção.
Você, ideal forjado
em nossa amável invenção.

A vítima

Tão bom
a ponto de reconhecer o pior de si –
rasgando a nudez que cobria
a vaidade de sua miséria.
Tão mau que lambia a fome dos frutos
que arrancava de sua boca
quando os dava como prêmio
à didática da doação
que paralisava toda
aprendizagem de ação
– onde fundava
o gozo sem tempo da espera.
Nada aceitava
mas tudo roubava
em troca
de sua opressora generosidade
onde cultivava a ingratidão de todos
que o açoitavam na incompreensão
de sua ignorância articulada.
vítima consciente de sua vitimização
nada lhe faltava
na falta que o bastava
e transbordava.
Tão perversamente inocente
a ponto de reconhecer a construção de si
e vestir a nudez que lhe entranhava
a castidade de sua miséria

Haver

Te contar um segredo:
não há segredos
não há explicação
para o que há
nem o que deixa de haver
Há sempre a possibilidade
-ou melhor, verdade-
de haver além do que há
e a verbal criação de dor e prazer
que enchem nossa fome
de não os saber
e a meticulosa autópsia
da mentira do nada que inexiste
( mas tanto insiste).
Por haver
a criação da certeza que não se crê
não há ver-
há modos de ver:
miopia aberta
para aquém da paisagem
cegueira incerta
para além da miragem
Te contar a verdade:
há eu e você
e este hiato
entre tantos nós.

Sem expiação

Há um bode descansando
à sombra de cada culpa
vomitando
a sombra de cada culpa
nutrindo a morte de seu sumiço.
Bode nutrido
pela gordura da consciência
que sobra
na falta do corpo do assassino
e alimenta nossa fome.
Há sangue humano
no sacrifício do bode
sangue desumano
que banha
o gozo do mártir
escorrendo a seco
em sua imunda beleza .

Ideal

Um caminho aquém da distância
que se anda para além da chegada
de um lugar que se constrói
com alguém com quem se anda-
sombra de um cuidado
que filtra a violência da luz
que cega o andarilho.
Alguém que se caminha
pela aprendizagem do tropeço
de mãos dadas ao tombo-
para cima tantas vezes.
Um tempo que se toca
como a um lugar inacessível –
um corpo recusado, olhar desviado
tombo tencionado
discurso inalcançável
querer enviesado
que o aparta do lugar mesmo
da vontade de chegada
ou algo de bom que sobra do erro
– erro sempre inconcluso:vislumbre da chegada.

Um castelo de areia
que cimenta sua queda
pelo prazer de algo
a construir,
como criança
que engole o mar e o vento
e toda invenção de realidade
que se nega à brincadeira.

Uma educação

Só não perdoo teu perdão,
este que prende
a eternidade ao momento
construindo a dissolução
do meu ressentimento
e me deixa atado à tua mão
à sorte da liberdade
vigiada pela compaixão.
Só não entendo tua compreensão
que embala os passos de minha ignorância
que cala os atos da minha violência
que silencia a voz da minha solidão.
Só grito mudo a resposta inaudível
do preço impagável
da doação.

O feio

Era vesgo, como Deus:
seu olhar mirava todos os cantos
e em nenhum lugar
brotava sua ausência,
como promessa de presença nunca saciada,
eternizada em eterna fome.
Era manco, como o diabo:
não andava, titubeava
na intenção da caminhada.
E parava:
olhando o céu,cego pela empreitada.
Era torto,portanto humano,
tudo queria,
tudo fazia
e nada entendia.
Mas porque não morto
se mexia.
Era feio,
porque a beleza não lhe bastava
feio porque o desejo o insultava
Feio, pois para os fins,
o belo era o meio.

Quadro

Olho o que sinto.
Ao longe, percebo
o que de perto engole
a cegueira de minha fome:
afago o corpo,tantas vezes ausente:
pedra talhada do toque
que molda o que sinto.
Toco o que sinto.
Afago a iminência da perda.
A perda se perde na miopia
do que sinto.
Estou vivo
e enquanto ganho iminente de perda presente,
memória sem tempo de ausência
– me sinto.
Vejo já o que não sinto.
Afago a pedra que esculpe
o desenho da ausência.
Sinto que deixo de sentir
e ao sentir que não sinto
minto
pois restauro no vazio
falsamente
não sentir
o que pinto.

Mensagem

Receba esta mensagem
que pouco diz
do que quer dizer.
Que se cria o que sente
à medida que se escreve.
Que se reinventa como intenção
à medida que se cria.

Receba o que vive
à medida
em que morrem outras tantas
possibilidades de encontro.
Desesperada espera por incomum ação
de comunicação.

Receba-me como destinatário
do que não sei como dizer
do que não sei como sentir
à medida
em que me mato
a cada escolha e invenção
para a mim
sobreviver.

Receba você
O que não quer
do que não sabe receber
por não se saber
por não me saber

Receba esta falha
como plenitude:

que não se encerra
como erro
que não se esgota
como acerto

que nos lê
como tentativa de toque:
para além
de se reconhecer.