2004-10-24 13:39:00

       
  

A ressaca da entressafra

Nasci sob a égide de uma das piores
gerações da história da humanidade:a geração da ressaca da entressafra,
póstuma à deterioração dos valores e do pensamento, póstuma à própria
decadência.A falta do que dizer, o esgotamento do pensamento humano,
típicos de fim de século e mais aterradores ainda em fim de milênio são
as marcas da minha geração.Nenhum gênio, nenhuma inovação, nenhuma
revelação, no máximo algum talentinho aqui e acolá que repete algumas
coisinhas com estilozinho melhorado.No fim do primeiro milênio,
pensava-se que o mundo iria acabar.Esta era a crise.Hoje talvez o
problema seja a consciência de que ele ainda vai continuar, sabe-se lá
como.

O tempo é de marasmo e tédio.Depois da contacultura e
dos modernismos estéticos, dos descontrucionismos afins, vamos
construir o quê, afinal?Os anos 80 já foram um desastre absoluto, o
ápice da cultura pop, da cafonice generalizada, a década do ‘’yuppie’’
engomadinho e desencantado de quaisquer ideologias que estejam além do
próprio bolso.Os 90 foram piores, simplesmente porque não tiveram cara,
não tiveram definição.Neo- liberalismos se somaram a neo-esquerdismos de
universitários abobados que quando não participavam de passeatas ,
reivindicavam aumentos de mesadas ao papai.

É emblemático:quando há uma profusão de ‘’neos’’, é
porque não há nada de novo, a não ser o que é velho, remastigado e
piorado.Continuamos a viver na indefinição.O mais recente conceito que
se aplica aos últimos cinquenta anos é o ‘’pós-modernismo’’.Faltam
substantivos novos à nossa época e sobram pronomes de apoio(neos, pós)
para denominar o que não sabemos.

Ou melhor, sabemos sim, mas temos preguiça de
conceituar por aversão mesmo, por não vermos o vazio em nos enfiamos.A
tragédia da minha geração é o tédio, a letargia de querer descobrir o
óbvio ululante de que, na desconstrução dos sentidos, perdemos nossa
razão de ser.A humanidade se sustenta através dos sonhos , das ilusões,
representados pela arte, pela religião, pelas utopias, que há muito se
perderam no caminho.Olhar no espelho é incômodo hoje, porque dói
descobrir que envelheçemos mal.Todos nós.O botox que usamos durante
séculos perdeu a validade.

O tédio é um mal tão grande quanto o fanatismo das
verdades absolutas.Nosso tempo é uma nova idade média(na falta de novos
substativos…) às avessas.O excesso de informação criou a preguiça e
deu margem a um novo tipo de obscurantismo mais pernicioso que o da
idade média.Naquela época a ignorância era consequência das condições
históricas.Hoje a ignorância é uma escolha de uma maioria entediada e
preguiçosa.

A máxima socrática do ‘’só sei que nada sei’’ foi
deturpada.Deixou de ser uma condição primária para aquisição de
conhecimento para se tornar apologia da imbecilidade.Precisamos de um
novo Sócrates, menos sutil e mais incisivo.

  

2004-10-21 21:16:00

       
  

Entulho

Pesa ainda sobre teus ombros a perene espera da esperança

Ainda te consolas em postergar o presente,

em reinventar o passado,em sacralizar o futuro.

 

 Saboreias com prazer a já neutralidade da tua angústia,

Pois bem sabes da marcha triunfante de tua ilusão

Tua mágoa já lhe soa pífia, posto não sobreviver

à  construção dos teus castelos invisíveis.

 

Estás só ,perdido, mas insistes em desbaratar o caminho

Epifânico cegueta,,arrancas da derrota

o parto da tua pretensa ascesce privada

 

Continuas a paulatinamente

reinventar teu próprio personagem

saboreando esgares

ao prazer de tua atuação sempre renovada

 

Participas agora efetivamente

Sem maiores  esclarecimentos

Como  a criança que sentiu o adulto virar farsa.

  

2004-10-17 12:43:00

       
  

Religar o quê a quem ou ao quê?

”Teologia é um ramo da literatura de realismo fantástico”(J.L. Borges)

 

Tive o assombro de presenciar na televisão uma das
cenas mais dantescas, dignas do último nível do inferno do autor
italiano:o padre Marcelo Rossi, com o olhar fixo e imutável lançado aos
céus desfiava uma espécie de novena em que rogava à Deus que abençoasse a
todos os espectadores do seu último filme. ‘’Senhor, abençoai a todos
os que virem o filme’’, repetia inúmeras vezes o padre em tom de súplica
emocionada.Mais aterrador que isto, só mesmo as sessões de exorcismo e
as entrevistas com os ‘’encostos’’ da tv Record .E pensar que o próprio
Jesus Cristo expulsou os vendilhões do templo em sua época.O que acharia
ele dos que fazem do próprio templo um balcão de negócios hoje em dia?

Nada contra a religião ou o cristianismo em si.Pelo
contrário, acho que a religião é um elemento necessário e fundamental à
humanidade.É preciso acreditar em algo que transcenda a matéria, mesmo
que este algo não tenha embasamento ou respaldo científico.A religião é
uma espécie de ‘’álcool’’ virtuoso que embriaga e faz bem à alma.

Mas também a religião é o terreno mais fértil para
toda sorte de picaretagens, porque trata-se justamente de uma matéria
incorpórea, sujeita às interpretetações mais subjetivas
possíveis.Partindo do pressuposto de que exista algo que transcenda a
humanidade(pressuposto pelo qual eu comungo também), tudo pode ser dito,
tendo em vista os mais diversos fins.O instinto primitivo de que existe
um ‘’Deus’’ ou ordem superior, ou seja lá o que for é quase uma certeza
instintiva. O ser humano é carente por natureza, não consegue se manter
de pé sozinho e teve que inventar Deus à sua imagem e semelhança para
que este o inventasse em seguida.É aquela velha história:’’se Deus não
exisitisse, seria preciso inventá-lo’’.

Se foi ou não necessária a invenção de Deus, eu não
sei, nem ninguém sabe.Instinto não se discute, mas religião sim, ao
contrário do que se diz, e deve ser discutida.Meu problema é com o que
fizeram com este instinto da ‘’ordem divina’’.Por mais boas intenções
que possam ser levadas em sua conta(o amor ao próximo, a
generosidade) não consigo ter grande respeito pela teologia, seja de que
igreja for, de qualquer crença.A(s) teologia(s)Sempre me pareçeu um
arcabouço filosófico em cima do nada, da criação humana que parte do
instinto de bondade, do amor ao próximo, etc, mas que no fim das contas
se traduz em uma espécie de literatura surreal que se pretende verdade
absoluta.Uma piada humana com pretensões divinas.

Por isto o mais pedante e pretensioso tipo
de erudição é a erudição religiosa. Em nome de uma série de postulados e
dogmas mais que duvidosos, atrocidades, injustiças e explorações
sórdidas já foram cometidas.Claro que alguns postulados religiosos como o
bem , a generosidade, o amor são prefeitamente louváveis.Mas pergunto
se estes elementos, tais como o sentimento da presença de ‘‘algo maior’’
em nossas vidas não seriam também da ordem do instinto humano, ou
seria, por exemplo, o amor, um fenômeno ‘’cultural’’?Creio que não.

Não é preciso desfiar aqui o rosário de explorações e
 deturpações de todas as igrejas ao longo da história, por que
estão ao alcance de todos. Das atuais, nem se fala.Basta ligar a
TV.Repito que não tenho aversão à religião, mas tenho profundo desprezo
por certos religiosos sórdidos e também uma certa inveja(sim,
inveja) do conforto  revigorante que deve dar
a pessoas crédulas acreditar piamente em expicações
metafísicas de sumas teológicas.A fé alimenta a esperança e a vida
de muito gente e neste sentido é e sempre será necessária .Mas também
alimenta o bolso e a vaidade de muitos aproveitadores, que não são
poucos e se multiplicam aos milhões.

Não vou me omitir:acredito em Deus ou seja lá o que estiver acima da
minha cabeça, mas desconfio Dele.Minha crença é curiosa, mas acho que
não estou só neste viés:acredito em Deus mais por necessidade mesmo do
que por crença absoluta.

  

2004-10-14 02:32:00

       
  

A lata de sopa Campbell não recontextualizada

 

 

Nos anos 60 a arte pop ajudou a reconfigurar toda a estrutura que dizia respeito 
ao lugar da arte na sociedade contemporânea.Na esteira de
Beckett e Marcel Duchamp, todos os pressupostos que definiam a arte,
todas as tradições e definições estéticas foram colocadas em cheque.O
consumismo, a publicidade, pelos quais muitos eruditos torciam o nariz,
foram recontextualizados e tiveram, ainda que de forma irônica e debochada,
um lugar decisivo na história da produção artística, como uma espécie de sarcástica
celebração do vazio da sociedade de consumo.

 

E por que não?Qual seria a raiz da invenção
artística?A invenção, a contestação?Arte é reflexo,mais
que criação.O humano já está dado e  o que
pode é  ser descoberto pela arte.Neste sentido,uma lata
de sopa recontextualizada pode sim ter um significado de contestação
social tão intenso quanto um quadro de Munch ou um romance de Zola.A
arte pop deu uma banana para os postulados >contribuiu para a contestação dos valores
tradicionais da sociedade.Não apontou respostas para nada, mas através
de seu caráter iconoclasta, apontou um caminho de liberdade e
relativização.

 

Quarenta anos depois, no que deu tudo isto?Em tudo e nada, como era de
se esperar.No campo artístico, vimos desde a evolução de gênios como
Jean-Luc Godard, como as mais diversas manifestações de picaretagem, como é o
caso flagrante da decadência das artes plásticas que hoje se verifica com instalações
estapafúrdias  e manifestações picaretas aos montes.A necessidade de um subtexto que
alicerce a obra artística é apontada como a influência mais nefasta da arte pop.Mas desde
quando a arte se mantém sozinha sem um arcabouço histórico, social, político, etc?Desde quando
uma obra de arte se equilibra sozinha?Nunca entendi direito o conceito de ”arte pela arte”, que sempre
me soou masturbatório e vazio.
 

 

Mas o triste mesmo, meus caros, é percebermos que no campo político, a
coisa não mudou nem evoluiu.Vemos um presidente semi-analfabeto, o Sr.
George Bush jr. jogar fora(e ele lá guardou?) toda uma sorte de
questionamentos éticos, sociais, psicológicos produzidos pela iconoclastia
cultural do séc.xx.

 

É a lógica capitalista, imediatista, pragmática, que tem o seu auge na
administração Bush.Realmente o relativismo que reinou absoluto no século
passado há muito já saturou.Mas voltar a um primarismo elementar de valores
absolutos é demais para o meu fígado.É a volta do brucutu travestido do
simples ,do elementar.E não há NADA elementar, meus caros.Tudo é
relativo, até o absoluto.

 

Na cabeça(esta sim elementar e simplória) de Bush, vivemos uma época de
luta entre o bem e o mal.Mas o que é pior?O barbarismo medieval religioso ou
o barbarismo medieval do capital?A intolerância religiosa do Al qaeda ou a
intolerância do capital contra a miséria?Ah, sim, o capitalismo permite uma
certa margem ”tolerável” à exclusão social.Ah, meu fígado…

 

A era Bush é a volta consolidada do conservadorismo prosaico, é a apologia das platitudes, do raso, da não
contestação.Bush é a lata de sopa Campbell não-recontextualizada.Tomara que 
seus quinze minutos de fama já estejam no fim.

  

2004-10-10 02:28:00

       
  

O grande culpado é José de Alencar

O primeiro grande culpado é José de
Alencar.Não bastasse o escritor ter quase matado o prazer de muitos pela
leitura na tenra infãncia com sua literatura melíflua e tediosa, o
homem ainda foi o primeiro a instituir o gosto pelo romantismo no Brasil
e a idéia de um nacionalismo utópico, ufanesco e apalermado.As donzelas
castas que guardam a honra como quem guarda os secretos tesouros
nacionais, os indiozinhos bons moços, europeizados e quase super homens
que simbolizam o orgulho da raça e outros tipos medonhos compõem a
‘’fauna’’ mais deletéria da história da literatura brasileira.E é a
leitura deste escriba que é indecentemente imposta aos adolescentes no
país inteiro.Depois vêem se queixar que o jovem brasileiro não lê.Depois
de um trauma destes, quem é que vai se aventurar a pegar em outro livro
na vida?

A influência nefasta de Alencar é imensurável e se
expandiu pelos quatro cantos do país.Alencar foi o pioneiro,
praticamente o inventor do nacionalismo brasileiro.Nada pior para uma
nação que o nacionalismo. O patriotismo é o grande refúgio da
mediocridade. O ufanismo é o terreno fértil para que os que nada pensam
ou têm a dizer, através do orgulho patriota venham a Ter um motivo para
dar voz plena e politicamente correta à imbecilidade. Alencar deu frutos
como a célebre frase dos sertões ‘’o sertanejo é , antes de tudo, um
forte’’.É nada. O sertanejo é um fraco, o urbano é um fraco, o ser
humano é um fraco.A ‘’força’’ que porventura possa aparecer Vém da
necessidade, da miséria, da falta de opção e está longe da
grandiloquência de Euclides da Cunha.Seria mais conveniente dizer que o
sertanejo é um faminto que se faz de forte, senão morre.

A única saída para a contrução de uma sociedade
suportável é a autocrítica, o avesso do romântico-nacionalismo babaquara
de Alencar.Só se contrói algo decente, seja uma nação, um grupo, uma
pessoa, através da consciência dos próprios erros, do próprio ridículo.O
ufanismo é o berço dos totalitarismo,da demagogia, da
megalomania.Hitler e Mussolini estão aí para confirmar o que digo.

Por isto tenho engulhos toda vez que vejo esta
campanha publicitária execrável do governo federal que faz apologia ao
brasileiro, enaltecendo os ‘’vencedores da pátria’’ como autênticos
brasileiros ‘’que não desistem nunca’’.Melhor seria o avesso:mostrar os
perdedores, os que se estrepam, os que desistem por falta de opção e de
oportunidade.Melhor seria botar o dedo na ferida, que, por sua vez, é
muito maior que a parte saudável do ‘’corpus’’ nacional.Para cada
vencedor, há um milhão de vencidos no Brasil, não por falta de talento,
mas por falta de competência e de vergonha de uns e outros que agora
fazem programa de auto ajuda para a nação tupiniquim., como um bando de
neo –Policarpos Quaresmas da terrinha.

Mas repito:o culpado primeiro é José de Alencar.Toda a ironia de um
Machado de Assis ou de um Lima Barreto não foram suficientes para apagar
a influência nefasta do escriba adorado pelos ufanistas.O culpado é
José de Alencar.O resto veio depois e o que é pior:continua vindo.


  

2004-10-06 10:34:00

       
  

O odor suspeito da esquerda

A cara balofa, pastosa, a barba por
fazer,o cabelo oleoso, o aspecto de dois ou três banhos atrasados do
festivo Michael Moore ratificam o que vários pensadores libertários já
disseram:embora as intenções das pessoas de esquerda sejam em princípio
mais louváveis que as de direita, a companhia destas últimas ainda é
preferível.Pessoas de direita são, no geral, mais asseadinhas, mais
gentis no trato pessoal,a conversa delas é mais agradável e tomam
banho todo dia.

Na verdade esta dicotomia esquerda–direita só
permanece mesmo no campo estético.Ambas nunca foram tão parecidas,
parecendo convergir para um centro indefinível, onde poucas diferenças
se mantém, com certo prejuízo da esquerda.Reparem:a ideologia morreu,
sucumbiu ante o peso do pragmatismo das questões administrativas.O
discurso esquerdista ainda permanece mais bem intencionado, mas as
políticas de direita mostram-se mais eficientes e eficazes.O inchaço da
máquina estatal fez com que conservadores e libertários concordassem
amplamente no que diz respeito à redução do estado (se não concordam no
mérito, concordam na prática.Alguém contesta?).

O resquício das boas intenções da esquerda estão se
diluindo em puerilidade, quando não resvalam no ridículo mesmo.A
pusilanimidadde disfarçada de tolerância,que permite que tratemos com
doçura terroristas assassinos, o viés antropológico que nivela Bach à
Amado batista são alguns pontos que confirmam o caráter esdrúxulo de
certo pensamento das esquerdas.

A esquerda é hoje como um executivo enrustido,
vestido de Giorgio Armani, que usa brinco no nariz e cabelo rosa-choque,
indeciso entre a elegância e o exótico, como alguém que tivesse
vergonha da própria elegância e sobriedade e buscasse desesperadamente
um certo estilo anti-convencional, moderno, sem saber direito o que é
isto.O resultado é uma espécie de Drag Queen de gravata e mocassins, um
Frankenstein hamletiano.

Não é o caso de abandonar os temas sociais  e
adotar o cinismo e a indiferença como estilo de vida.Mas uma coisa é
certa:esteticamente a esquerda fracassou.A direita é cínica e nefasta em
certa medida, mas seu cinismo contrasta com a ingenuidade e certo mau
gosto mesmo da esquerda, que confunde humanismo com
cafonice.Explico:preocupar-se com a fome na Etiópia não significa
vestir-se como um guerreiro Zambule, nem trocar Wagner por tambores e
berimbaus;interessar-se pela cultura indígena não significa nivelar a
vida dos nambiquaras à dos filósofos da grécia antiga, muito menos se
vestir como um pajé de Shopping center.

Enfim, moral da história:é louvável e necessário
estar ao lado dos interesses dos desfavorecidos, mas também é preciso
tomar banho.Todo dia.

  

2004-09-30 17:12:00

       
  

Da embriaguez

Duas
coisas sempre me impressionam quando viajo ao interior do país:a
religiosidade e o alcoolismo.Não há uma só cidadezinha do interior do
Brasil que não se molde nestes dois pilares.Há invariavelmente uma
igreja e um botequim que significam a alma do lugar.

Não é
chacota.Ao contrário, é a metáfora mais elementar do que é viver:se
embriagar.Seja de álcool, de cocaína, de Deus, de amor, ou do que houver
mais à mão.Viver é paradoxalmente fugir à própria vida.Afinal de
contas, já é senso comum dizer que não temos a mínima idéia do que
fazemos aqui, do que é a vida.Somos nós mesmos os autores , os
inventores da vida, dos sentimentos, das idéias.É tudo ficção, meus
caros.A vida real nos escapa, porque a realidade em si não existe.Ela
nos é dada por nossa imaginação.Somos o produto do meio e o meio somos
nós mesmos.Até parece conversa de bêbado, não?

Por isto mesmo a
arte é a mais nobre das atividades, porque ela é a mais autêntica em
escancarar sua hipocrisia.Platão, pobre coitado , não pegou o espírito
da coisa.A arte é a cópia da cópia que nós , incoscientemente tecemos e
que julgamos ser a realidade.(como nos enganamos, não?).Não existe o
real, muito menos mundo sensível.Fora da caverna platônica, o que há é
outra caverna, e outras sombras que espreitam as sombras de dentro de
outra caverna, e assim sucessivamente.A arte simplesmente assume sua
própria condição de construção artificial da realidade, que , per si, já
é um artifício construído.

Ah, não esqueçamos das verdades
factuais que não explicam coisa nenhuma mas estão aí para serem
veneradas por nobres jornalistas que têm horror a ultrapassar os
fatos…

Pois eu digo que prefiro o estado de embriaguez: a
embriaguez do amor, da arte, do sexo, da religião, etc, etc,.E quem me
garante que esta nossa lucidez não seria um estado mórbido da alma;quem
me garante que a verdade não estaria na poesia e não na ciência, ou que
esta não seria uma espécie de poesia?O próprio Einstein nos ensinou que
pouco estudo nos afasta da religião;e que muito estudo nos aproxima
dela.A religião é a mãe da arte, não nos esqueçamos.O que foi feito dela
por certos canalhas” lúcidos” demais é outra história.

A
consciência apenas nos diz que não sabemos de nada e que precisamos nos
inventar o tempo todo.É o que nos demonstra com todo o método(caótico,
mas ainda assim método) a filosofia a partir de Platão, pobre coitado,
na verdade um grande ficcionista-contrutor de realidades- que
inconscientemente(olha só a embriaguez) queria expulsar ele mesmo de sua
república utópica , de tão chata que ele deveria
considerá-la.Paciência,o homem era um grande artista enrustido.

 

  

2004-09-28 18:05:00

       
  

A verdadeira revolução

Os lábios carnudos e bem delineados
são produto de uma delicada aplicação de botox;os olhos verdes
lancinantes, fruto do uso de lentes de contato coloridas;o corpo
magnificamente esculpido por sucessivas lipoaspirações e enxertos de
silicone.O rosto juvenil é produto de blefaroplastias e levantamento de
bochechas.E tome botox.

Foi-se o tempo em que a beleza era mera questão
genética.Hoje é também uma questão científica e sobretudo
econômica.Torna-se belo aquele com suficiente poder aquisitivo para
adquirir sua estética sonhada e desejada. O encanto sutil da juventude é
hoje vendido por dois tostões ou um pouco mais. Em nossa era
capitalista, o maior bem durável pode ser a aparência, não se esquecendo
que o dinheiro também compra a durabilidade do estimado bem.

O mercado está destruindo o acaso, vejam só.A
possibilidade ou não de se nascer belo ou feio e continuar assim está se
diluindo.Por um preço razoável, você pode escolher a cor dos seus
olhos, a tessitura de sua pele, a angulação do nariz, etc,
etc.”Anatomia é destino”.Era, já não é mais. Em breve, com o
avanço nas pesquisas genéticas, poder-se-á escolher as características
dos filhos. O ser humano cada vez mais toma posse das leis da natureza,
moldando-a a seu bel prazer.

Irônico que o progresso da manipulação da natureza
não tenha se dado sobre o intelecto, como havia previsto Aldous Huxley
em seu ‘’Admirável mundo novo’’, mas tenha acontecido a partir do
corpo.Fácil de entender: as consciências são facilmente manobráveis,
quer seja pela exclusão sócio-econômica ou pela mediocridade inerente ao
ser humano mesmo.Desnecessárias manipulações genéticas de ordem
intelectual para conseguir dominar um povo ou uma raça.O ser humano é
dócil e amestrado por natureza.Um ser humano dominado é uma redundância,
um pleonasmo.

A revolução é da ordem da futilidade, da aparência,
do belo. Em um mundo esvaziado de sentido e de ideologias, nada melhor
que o investimento na casca, uma vez que o recheio apodrece e já começa a
cheirar mal.Toma-se um banho de loja(genética, fisiológica…) e tudo
se resolve, tal qual alguém pouco afeito a um banho
convencional que passa um bom perfume francês para disfarçar
odores desagradáveis.

E o mais divertido é que esta revolução não
revoluciona coisa nenhuma, não subverte valores,não cria valores, não
acresenta nem tira nada de coisa nenhuma, apenas deixa as pessoas mais
bonitinhas.Os valores são as cifras de quem tem mais para comprar
mais.Os valores são dos olhos que prazeirosamente acompanham as mutações
genéticas que estimulam o prazer táctil e visual.Esta é realmente a
verdadeira revolução sexual, que libera o indivíduo dos seus limites
estéticos e o torna objeto de desejo: a prestações, à vista ou parcelado
no cartão.

  

2004-09-25 15:38:00

       
  

Circo sem pão

Mesmo nos momentos em que tive mais convicção,
sempre tive a estranha sensação de que estava representando.Nunca
consegui agir naturalmente de todo.E duvido que alguém consiga.Se a vida
não tem muito sentido mesmo, não resta outra opção a não ser construir
um sentido, de inventar a nós mesmos.Por isso a impressão de estarmos em
um teatro.Como não há certezas, fabricamos algumas, ou mesmo encenamos
nossas dúvidas.O teatro em si não passa da representação da
representação dos nossos dilemas.Haja metalinguagem nisto tudo.

Na vida,assim como no palco,uns interpretam melhor, outros nem tanto,
tudo variando de acordo com o público e de acordo com o ator.O
enredo é que nunca é muito bem definido.Farsa, comédia, tragédia, tudo é
misturado.

Bem, todo este preâmbulo metafísico meio óbvio para observar o
seguinte:se é para interpretar , porque uns interpretam tão mal e mesmo
assim convencem a tantos?O exemplo flagrante é o caso das
eleições.Reparem na tv que as performances são as mesmas de sempre, o
tom é sempre umas duas oitavas acima do convencional, a canastrice é
generalizada.Desde que Marlon Brando revolucionou o método de
interpretação nos anos 50, dando ênfase a uma atuação mais naturalista e
contida, nunca se viu tanta canastrice na televisão.O horário político é
um desserviço ao teatro, um retrocesso a um tipo de atuação
melodramática, ao gosto de Rodolfo Valentino e Bela Lugosi.

Sou favorável a que os políticos tenham aulas de teatro.Se é para
enganar, quer dizer, ‘’convencer’’, que o façam com mais talento e
critério.Sim, está provado que todos nós temos uma necessidade vital de
ilusão, de sermos enganados mesmo.Mas pelo amor de Deus, que ao menos
nos dêem um espetáculo menos pobre, menos canhestro, mais rico e menos
óbvio.Tudo na vida deve ser feito com critério e um mínimo de talento,
até a mentira, digo, ‘’a encenação’’.

E se o grosso da população ainda não tem sofisticação suficiente para
apreciar algumas sutilezas de uma encenação de talento, que apurem o
gosto popular, para que todos possamos  ser
democraticamente enganados e ludibriados com mais leveza e
gosto.Assim todos poderemos usufruir de uma bela catarse.

E enquanto as eleições não acabam, bom espetáculo a todos.Se aguentarem.(o pior é que sequer podemos sair no meio da peça…).

  

2004-09-22 16:13:00

       
  

Sobre algo



 
 
Penso diariamente em suicídio.Por mais absurdo que possa parecer, é
a única maneira de manter  minha lucidez.É difícil conviver com a
falta de sentido e do total esgotamento intelectual humano.Todos os
humanismos foram contestados, todos os sistemas políticos, toda a
filosofia, absolutamente tudo foi posto em cheque no século passado.
 
O que sobrou?Nada mais que este porre absoluto chamado
relativismo.Dá até saudade de um certo conservadorismo que dizia (que
ainda diz) que há princípios incontestáveis, que há valores
indiscutíveis.
 
Mas não dá para voltar atrás.Como acreditar piamente em uma moral
cristã depois de Nietzsche?Como pensar em uma república utópica de
Platão depois de termos inventado esta mídia imoral que fabrica meias
verdades?(Fatos, eles dizem, atenham-se aos fatos.Mas o que são os fatos
sem uma compreesão maior?”os fatos me entediam”, já dizia Paul
Valéry.).A história das idéias parece ser uma constante humilhação de
teses passadas, uma permanente autofagia que nos lança , cada vez
mais , em um vácuo.
 
Não sou cético, apesar de o parecer.Meu problema é justamente
este:tenho esperança.Em princípio, todos(os que permanecem
vivos) temos.Me alimento exclusivamente deste câncer ”salutar”
chamado esperança.É preciso saber tirar lições do absurdo em que
vivemos.É urgente a criação de uma nova didática que obedeça aos moldes
da arte.Sim, da arte mesmo.Platão expulsou os artistas de sua
”república”.Talvez fosse melhor expulsar os pensadores.Não há mais
espaço para um pensamento cartesiano, lógico, racional.É preciso
reinventar o modo de se pensar, e talvez este modo seja a poesia.As
tensões da nossa era ”pragmática” estão se rompendo.Vivemos em um
mundo bárbaro travestido de civilização.”O mais forte sobrevive”.Força
econômica, força de poder.Nada mais.Apenas um arremedo do sistema
feudal da idade média.E ainda nos chamamos de ”pós-modernos”.
 
Vivemos, aparentemente, em um mundo supostamente melhor do que
foi antes.Aqui, na terrinha ,desfrutamos de um regime democrático que
dá voz à todos.Mas de que adianta o direito à voz, se quase ninguém
tem o que dizer?Não há voz, mas apenas um grunhido animalesco e
inaudível.O que se observa é uma multidão de apáticos que seguem
ordinariamente a voz daqueles que JULGAM ter razão, o que é muito
pior.Yeats dizia que ”os piores sempre são radicais, enquanto aos
melhores falta convicção”.Tendo a concordar.
 
E ficamos nós aqui, intelectuaizinhos desencantados mastigando
nossa própria desilusão.É preciso agir, é preciso sim ser infantilmente
utópico, é preciso lutar contra moinhos de vento, é preciso ser patética
e ridiculamente quixotesco.Ou então seremos esmagados por esta
razão medíocre, por esta sanidade tediosa que nos ensinam desde o berço e
que deu no que deu.Cá para mim, prefiro o meu ridículo.