Mentes sobre a mentira

Mentes sobre a mentira
que ela repousa sobre
a opinião enganosa
que habita a sentença
que pariu tua visão de mundo
que queres empurrar para dentro
do útero da realidade
qual o revés de um parto
em que matas o possível
nascimento da verdade

Da realidade nasce
O imaturo feto da verdade
e sua eternidade tem cheiro
de uma breve e primeira idade:
fatos e juízes cobrem a verdade
de uma placenta pegajosa
que sufoca sua mobilidade .

Órfã , a verdade aprende a caminhar
sem pai nem mãe
passeando sobre a cegueira do juiz
que tenta aprisioná-la à sua sentença.

Nascer jamais se esgota:
de um feto abortado
fica a mágoa ressentida
cuja cicatriz aberta semeará
um novo filho
que embalará a esperança
que dará à luz
a uma sempre ressuscitada verdade

O choro de um sempre recém nascido
silencia
a sentença do juiz
que limita a verdade .
o primeiro toque breve
e delicado da criança
em sua mãe
ultrapassa toda prisão
da eternidade .

Crença

Não creio exatamente no que digo
Não creio exatamente no que faço
Não sinto exatamente o que creio sentir
Me imponho querer sentir crer e fazer
o melhor
que creio ser para mim e você .
Mas neste convencimento de mim
desfaço o que creio ser atuação
e acabo crendo em falsas mentiras
que me traço.

A virtude em que me peso
flutua no vício que tantas vezes
me empurra onde sou fiel
ao que me traio:

Um gesto forçado de carinho
acaricia a pele de uma boa intenção
e redime a preguiça de um corpo
deitado na descrença

Um gesto forjado de bom desejo
assassina minha pouca vontade
de querer viver
assassina meu desejo
de não querer me ver

Me forçando crer , me vejo
nas lágrimas que enxugo
em teus olhos quando
começo a crer no valor
do que interpreto
do que acho sentir por você .

Megalomania

Amanhã construirei castelos que desabarão
como a areia que ampara meus sonhos ;
areia levada pelo vento
que não destruirá a arquitetura do meu ideal; ideal sedimentado
no vento
que leva minha paixão ao espaço
ecoado no tempo

Amanhã Farei discursos que ultrapassarão
o sentido das palavras
e inaugurarão uma nova língua
que ditará uma nova tradução da existência que recriará uma nova humanidade em
nós .

Por ora , ensino uma criança a falar
a murmurar entre grunhidos
o sentido da falta :
a falta na sua fome
no seu desejo por um mundo
que obedeca sua vontade difusa
do que ela jamais tem exata consciência
de querer .
Ensino à criança os gestos
da construção do castelo
e a arquitetura da sua destruição
levada pelo mar pelo vento
onde repousa a memória eterna
de sua ação .

Ensino à eterna criança
O valor terno e eterno
de palavras inacabadas
e castelos furtivos
tatuados no vento
que chegarão
como brisa suave
acariciando um adulto .

Só esta palavra

Só esta tua palavra solta ao léu sem intenção pesa na alegria do moribundo vivo que o adorava .
O bife temperado pelo afeto da tia distante que ainda o adora salga tua indiferença.
O desejo que tens por corpos que não te enxergam espia o carinho no canto dos olhos
das poucas almas que te amam .
Os afetos pouco se comunicam e se espalham em poças rasas que juntas inundam uma vida . Muitos se afogam na sede cercados por um rio de água doce . Abra os olhos . Abra a boca . Sorva o rio de carinho e amor que te navega

Nada passa

Na verdade , Nada passa .
Nos atravessa a beleza , o encanto primaveril de um rosto de um gosto de um encanto
que nos arrasta
mas tudo fica como sombra
em busca de luz que não se acha
e intuída nunca nos basta

Nem mesmo o engano passa.
A ilusão sempre fica
como memória furtiva da vontade
de resgatar um momento
que traça a linha tênue entre a verdade
e a criação lírica
de uma maior realidade .

O beijo não acontecido jamais passa
A ação não tomada nos emprenha e devasta
O ideal iludido jamais se afasta
e ressuscita
como veneno que assassina uma estéril saúde veneno que respira em nós uma doença
que nos restitui nossa enganosa
e necessária crença
Em todo desvio que por nós sempre passa .

O tempo que criamos
O tempo que nos falseamos
O tempo que nos inventamos
a quem e o que nos misturamos
fica em nós como uma brisa
que nos trespassa
que violenta todo esquecimento
e revolve em nós todo momento
que nunca passa .

Sentido da vida

O sentido da tua vida é teu filho
que vai dizer
que o sentido da vida dele
é o filho dele
O sentido de vida é mais vida
que se devora no sem sentido de viver.
Sentido da vida é a ilusão de não morrer
não apenas no rosto do teu filho
que copia a paisagem da ilusão
da tua eternidade .
Sentido da vida
é a carícia ilusória
que se dá ao filho ausente
tão presente em cada rosto
que amas no instante
que não morre pela ação do gesto consumado
que não morre pela intenção do gesto tatuado
na esperança de jamais perecer

Natureza

Olhas para o suave farfalhar das flores ao vento enquanto acaricias teu cão . Suave o vento que arranca das flores suas pétalas e as aleija . Suave a rotação da terra que nunca descansa rodando em torno do seu eixo. Suave e preciso o movimento do cão que abocanha o pássaro lírico que raso voava . Olho para teu olhar suave que arranca da minha paisagem uma erupção que queima toda forma de paz . Suave cada instante que nos aproxima do fim onde por angústia abocanhamos o pássaro lírico que atravessa o suave vento que nos despetala e aleija pouco a pouco .

Me atraso

Desculpe : Me atraso porque não sei exatamente onde quero chegar.
Parto de um sentido indefinido e caminho nos desvios por onde me perco antes de chegar aonde não sei se quero ou temo querer : você .
Caminho sim em sua direção , por onde você tantas vezes se afasta , a fim de não nos colidirmos em um caminho tão exato . Não te entendo como um sentido único e exato ou perfeito , mas construo o caminho a mim mesmo , onde a chegada é seguir caminhando sem descanso . Até você , até mesmo ao teu abandono .
Desculpe : me atraso porque voluntariamente me perco de você , de mim , a fim de contemplar outras encruzilhadas . Sigo fiel ao caminho que escolhi sem deixar de saber que as curvas valorizam uma linha reta.
Me atraso calculadamente menos por medo de te perder , mas por pavor de , te encontrando , perder o sentido do que achei em você .
Você é meu lugar nenhum que me caminha para além dos meus passos .

Ninguém para culpar

A tragédia finca seu silêncio no corpo ausente de um culpado .

Ninguém é culpado por não te olhar , desejar , amar . Ninguém é culpado do teu desejo negado que se deixa tocar por outra mão que não a tua e acaricia teu ódio que se espalha ao indefinido.

Ninguém é culpado pelo vírus sem consciência que se alimenta do teu vigor ou do teu vigor que se queda consciente da tua ausência de vontade que te abraça sem fervor .

Nem mesmo você é culpado por amadurecer o teu querer e apodrecer o desejo primaveril pelo que te anulava. Você se descobre e sua descoberta te encobre por onde tua febril juventude te amparava na mais lírica ignorância que te esboçava um
Sorriso de felicidade. Você ainda anseia pela ignorância que emoldurava teu sorriso p
Ora destroçado.

Ninguém para culpar

Um terremoto não tem
Culpa . Uma rejeição não tem culpa . Uma morte não tem culpa. A queda de uma vontade não tem culpa . Não se culpa a suposta traição de quem não é fiel a teus ideais e intenções . Sem ninguém para culpar , restam os reparos das pequenas ruínas cotidianas: a cura dos feridos que ainda desejam , a reaprendizagem da vontade , a realocação de mortes e afetos ainda vivos , a acao de amar para além da vontade de um amor que se foi ou que não mais chega.

A ausência da culpa apodrece o corpo e amadurece uma possível santidade.

Prego

Tua vaidade contrariada finca na mão de um novo Cristo o prego com que martirizas teu falso senso de justiça .

Teu ressentimento se traveste de amor a uma justiça que age como carrasca diante daqueles que ousam não enxergar teu martírio .

Teu fracasso berra por tuas chagas por onde não enxergas as chagas que impões a teu semelhante por vingança a quem não merece tuas torturas .

A mão de um semelhante que pregas na cruz é a tua mesma . Tu te tornas um mártir da tua própria cegueira , se torturando , se matando na morte de quem não merece ser assasinado por teu ressentimento.

Todo mal , todo ódio nascem de um mal cometido . Todo bem , todo amor nascem de um mal cometido. No calvário da vida ,crucificados todos ,cada um escolhe a Cruz que lhe cabe.

Escolha bem o seu martírio a fim de que ele abra os braços em abraço ressuscitado a um outro crucificado.