Nunca soube amar.
Como um psicopata
em busca de cura
pra sua ausência
de sentimento
aprendia os gestos
do afeto
imitava a ação da doação
com tamanha precisão
que se passava por santo
ou poeta
em busca do toque
de algo
que atravessasse um vazio
que jamais enxergara.
Não só não sabia amar
como desaprendia
os gestos
mecânicos do amor
para depois reaprender
o ritual
que jamais saciava
sua fome.
Psicopata profissional
sorria da incapacidade amadora
de aprender o fundamento do amor.
E era este seu princípio
de amor : amador.
E se ria do princípio permanente
de aprender o que nunca
se esgotava
porque nunca o preenchia:
transbordava no que
desesperadamente queria sentir.
Psicopata profissional
interpretava os gestos do amor
como um ator
que amava seu teatro .
E assim amava – verdadeiramente
na sua realidade encenada.
Tudo
Tudo
O sentido da vida
é o que falta.
Não falta de sentido
porque há vários
todos à distância
de uma mirada
ou mero bocejo
ou obstinado tropeço.
O sentido da vida
é o que falta
à vida mesma:
o beijo negado
o olhar não dado
o filho que não veio
a palavra não inventada.
O que falta complementa
o que nos move:
a ausência de afeto na areia árida
que não responde
ao toque
cria a resposta do apego a algo ou alguém
que inventamos.
Areia que escorre
pelas mãos
que nos damos
mesmo no vazio da mão que se desprende no nada onde nunca estamos .
O que falta à vida é o nada que nunca tocamos.
Em especial o aceno negado
nunca esquecemos.
Mesmo o esboço do nada
na presença de todos os
presentes que ganhamos.
Mesmo
o abandono cravado
na carne
no passado
que ultrapassamos
fincando e lambendo
a cicatriz
do retorno que sempre esperamos .
A que sempre retornamos
é ao que falta:
o que nunca tivemos
o que nunca sequer sabemos
se queremos.
Até mesmo o tédio desesperado
de tudo que esperamos
e deixamos
e vivemos e esquecemos
abraça o que falta.
O que falta
jamais nos abandona
Jamais nos desencontra.
O que falta nos aleita.
Só na morte nada nos faltará.
Poder
Nada pode uma criança
contra a mão violenta
que lhe avança.
Nada pode a esperança
do homem que estende a mão
ao desejo da mulher-
que não lhe alcança.
Nada pode a mulher
contra seu desejo no reflexo
do espelho
que não a quer.
Nada pode – homem ou mulher
contra a estúpida mão
de quem lhe esmaga
contra a frágil mão
da criança que lhe afaga.
Nada quer o tempo:
apenas observa a criança
a cultivar no vento
o poder de sua esperança.
Imortal
Imortal é o tempo
da memória do momento
que jamais se esgota
a contento
Imortal é a cicatriz
que imobiliza o tédio
como insalubre remédio
a salgar o vento
que pesa o tempo
qual risonha meretriz
Mortal é a eternidade
que finca raiz na saudade
e desterra o tempo
de seu único intento:
o breve instante
que nos vive e morre
em que escorre
o unguento
que quase toca
algum vento
de mortal felicidade.
Quase verdade
Sempre acreditei
em tuas mentiras
não como verdade escamoteada
mas como o lugar nenhum
de uma realidade
verdadeiramente falseada
de uma realidade fundada
pelo teu olhar sobre mim
que a moldava
e me criava
aos moldes da mentira
tão lírica
que eu também
nos contava.
Parabéns
Teu aniversário ,
presumo .
Não sei . Desconheço tuas datas .
Desconheço
o nosso tempo
desde que
fugiu à direção
de nossa distância .
Te Parabenizo agora
neste sempre
porque nasces em mim
a todo tempo
na lembrança
ou esperança.
Batizo o tempo
que recompõe
o tempo perdido
de cada instante
de teu abandono .
Assim como brota eternamente
o embrião
da tua ausência
abortada pela luz cegante
de tua presença .
Sim , tua presença
por perto
cega
por esta luz que devora
todo fim do teu aniversário
que agora se celebra
em toda penumbra
onde te vejo melhor
onde te sinto melhor
na distância
de um terno
desespero .
Parabéns
a todo o tempo .
Filosofema de fidelidade
Uma ideia transforma
a vida
de uma pessoa
Uma pessoa transforma
a vida
de uma ideia .
Algo em teu rosto
que acaricio
me lembra o esboço
do ideal
a que me entrego .
Um nariz gesto olhar palavra
pedaço de algo ou alguém
pedaço do ideal
de algo ou alguém
quase morto
na esperança
por demais vivo
no erro acertado
da lembrança
me lembram algo
do teu rosto .
Em você , sou fiel
à traição
que me escapa ao toque .
Em você , acaricio
a traição
que me escorre
entre os dedos
com que toco
teu rosto.
Em você
renovo meu ideal
difuso
de fidelidade
ao que nos perde
ao que nos trai
onde nos achamos .
Didática amorosa
Amor toma a forma
de quem ama :
um canalha há de amar
acanalhadamente,
lambendo o fruto
cuspindo o caroço
da coisa amada .
Um santo há de amar
com excessiva generosidade
sem uso e fruto da desejada
que se martiriza por assim
ser tão mal amada .
Mas Amor também é ideia
que se persegue
e transforma o amante
pela execução amorosa
da prisão voluntária
à posse inaugurada
de seu objeto amado.
Amor é escolher deixar
a liberdade trancafiada .
Amor enxerga no amado objeto
algum esboço de pessoa
que se inventa
à imagem e semelhança
da realidade
que se engana .
Amor é amar o engano voluntário
Amor é amar
o sacrifício da esperança
da ideia de quem se ama.
Porque nem se conhece tanto assim
com tanto nexo
o amante e sua verdade .
Ama a sombra de sua chama
a incendiar o seu reflexo
-em quem se ama
sua enganosa liberdade .
O eterno
Nada espero da morte
nem mesmo o fim
nem mesmo o nada
que definido
passa a ser algo enfim
Suicida vital
tudo espero da vida
esperançoso
desesperado de mim
lambendo as chagas
do meu mal –
Eu , meu festivo canibal .
Nada finda
tudo é constantemente
ainda .
Parto
Nascia em mim criança
a todo tempo
mil traços de destinos.
Mil passos de heróis distintos percorriam
o chão do sonho
que flutuava
no céu
de todas as possibilidades.
Parido o homem
trago na boca
o seio do tempo
que seca o leite
das projeções:
o câncer que aleita
minha maturidade .
Hoje fatio a realidade
no pedaço de sonho
que me coube
onde ressuscito cotidianamente
a sombra da criança
projetada
pela estrela morta no céu
cujo brilho ainda se vê
nos anos luz
que levam a enganar
os olhos que por ela
ainda se iluminam .