Esfinge revisitada

Ninguém sabia
o que ela pensava
ou sentia .
Nem ela se pensava.
E se ria
do que
nem sequer
sabia se sentia .
Não se preocupava
em se decifrar
porque se devorava
no que de si se escondia .
Comia tudo
que não compreendia .
Talvez a exclamação
de seu segredo
fosse a dúvida
que a quem a amava
respondia .
Sua beleza óbvia
que sua sombra revelava
que sua pessoa
de si mesma
a escondia
também a devorava
na solidão de sua orgia .

Mais

Um corpo não mais pede
por um desejo
há tempos negado
que a vontade desesperada
ainda o obriga a desejar .
Um moribundo não se sacia
com o cansaço e o medo
que a vontade nega.
Uma rosa murcha
não pede por sua beleza perdida
ou por vontade de vida
mas permanece viva
em toda visão
que a abriga .
Uma palavra não traduz tudo
o que ela vê ou quer da vida .
Toque algum consegue exprimir
o tato que desenha o desejo
de sua vontade
-seu desejo de verdade .
Toda chegada
pede e aponta
por um caminho a mais.

Sombra

Não enxergo por onde
você não me vê.
Por isto não vejo
minha ausência
em seu olhar .
Mas olhar
para minha cegueira deliberada
me faz ver por onde
me escondo
de mim mesmo:
grito por onde
não me veem
para que alguma mão
se estenda
e nos ajude a caminhar
em direção a uma luz
que nos cega .
Procuro uma sombra
que delineie o esboço
de um corpo
que eu possa abraçar .

Impotência

Acima do orgasmo
nenhum prazer se levanta
para além da consumação do ato
da tua satisfação imediata .
Para além do que te sacia
uma fome não identificada
constrange teu toque
para aquém
do que ele acaricia.
Acaricias a carne
de um espelho
onde tateias
a busca de um corpo:
o teu o meu o nosso :
nenhum de nós se funde
para além do que
o toque sugere .
Recomece
por tatear a ausência
que habita o êxtase
da nossa impotência .

Um gesto de delicadeza

Um gesto de delicadeza
esmaga a violência
ignora a indiferença
Uma delicadeza- suicida que seja-
a quem a ignora ou devora
inaugura no deserto negado
um sentido criado de beleza
que na solidão aflora
e ressuscita
um nicho de vida afora.
Uma flor, esmagada
pelo toque indelicado
que seu encanto implora
por espinhos sorve o sangue
da mão que deplora.
Um gesto de delicadeza
-assassino que seja-
a quem a delicadeza ignora.

inércia

Cada passo que não dou pavimenta o descaminho
que pisa em todas as possibilidades abertas.
Cada palavra não escrita
cada ação não encenada desenham o infinito
que suicida o texto da peça ínfima que limita
uma vida que se abre no sonho vivo da minha inércia .
Nada farei para encerrar
o espetáculo da minha lânguida ubiquidade
até que alguém repouse os olhos
em minha inação desesperada de esperança .
Nenhum sentido até que me apontem
o horizonte da encruzilhada .
Antes serei o maestro
da ousadia da minha covardia .
Por medo do vício
me torno a virtude da ausência habitada em mim mesmo .
Até que me toque- e me tocam sempre , tanto mais à distância –
Até que apontem o lugar nenhum de minha ausência
Até que me movam pela acusação
da obrigação de permanecer
à falta de opção mais clara
pela falta de qualquer negação
de estar em todos os lugares
todos os tempos
todos os esquecimentos.
Até que eu me desminta
por esta ode à impossibilidade ativa de minha inação
quando então aprenderei
o valor de um gesto interpretado
que encena um sentido
acreditado
criado
sempre vivo
tatuado na memória
de tudo que
jamais desacontece .

Água

Para além do teu erro
eu te amo
-na essência da virtude luminosa
incrustada na treva
da tua cegueira . 
Para além do que dizes fazes
para além do que me trai
amo fielmente a promessa
que carregas por sob tuas pálpebras fechadas .
“ te perdoo porque
não sabes o que dizes
não sabes o que fazes.”
Nem eu. Nós.
”Te amo pelo meu erro
compassivo a meu perdão”,
diria um tão generoso ser
assim a quem ama
enquanto o amado lamenta
o perdão que o generoso
não enxerga necessitar
para seu
voluntariamente
cego amor
que embrulha sua luz.
“ Perdoai -o.
Narciso toca no outro
a água que espelha
o reflexo
de sua entrega.”

Pequenos gestos cotidianos

Acordar.
Pisar o chão do sonho amassado
na inconsciência dos passos trespassados pela realidade .
Acordar o sonho
para sua transformação em realidade .
Erguer o corpo das quedas de ontem
para cair na vontade de desabar
um abismo até um outro
ao alcance de sua mão .
Atar os nós dos sapatos .
Atar os nós dos desacertos de ontem.
Lavar as mãos pelos erros de sempre.
lavar os erros das mãos de outros .
Lavar-se da sujeira do dia anterior
para sujar – se na placenta
da vida de todo dia .
Trabalhar :
os desmandos do chefe abusivo
os abusos do outro invasivo.
Invadir alguma fresta de algo bom
na parede que me separa
de um amigo.
Comer :
a vontade de não mais me saciar
devorar o desejo de não mais existir
defecar o vazio inexistente .
Voltar:
ao lar do beijo que não mais amo
a reinventar o amor
que não mais sinto
a forçar a recriação
do sentido do sentimento;
Reproduzir o carinho
no gesto forçado
a quem me cerca
até que invenção e força
sejam leves como o ar.
respirar :
os pequenos gestos cotidianos
que nos salvam de uma vida
não percebida .

Não chorei em teu enterro.

Talvez as lágrimas evaporassem
antes de brotar por eu não ter aprendido
a te amar devidamente:
amar a lógica das diferenças
para além da superfície do que nos unia;
amar o que eu insistia em matar em você
que era precisamente o que me fazia viver;
amar o que eu matava em mim para poder sobreviver
a nosso erros que plantei em você.
Não choro por tua ausência porque tua presença inacabada
está sempre por se refazer em mim,
ainda grita em mim
como a busca de uma palavra não proferida
de um carinho esboçado e não perpetrado
como a esperança desesperada
de um gesto adiado
e em algum lugar esperado.
Não chorei em teu enterro
porque teu cadáver ressuscita em mim
como um corpo
que eu abraço
em nossas vidas sempre inacabadas.
As lágrimas que não vieram
salgam a terra em que se afundou
a última despedida que não veio.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque eu ainda não mereço
chorar lágrimas que lavariam
a mágoa que atravessa nosso chão.
Não chorei no teu enterro
Não me despeço de você
porque não há despedida
para uma morte
para sempre
jamais concluída.

A beleza da merda

Alguns tentam achar ouro
no meio da merda –
o belo nasce de uma busca
banhada de merda.
Alguns fazem do ouro
um cultivo à merda
que habita sua busca.
Alguns poucos
fazem da merda adubo
que cultiva a beleza das flores
e tudo que floresce e nos alimenta
( que depois vira merda).
O mais belo e produtivo
nasce
do sábio cultivo da merda.