Inversões

Proclama a relativa mentira resoluta
que não existe verdade absoluta:
a pedra que cai sobre a impostura
sequer tem gravidade para o veraz mentiroso
no baixo rigor de sua altura

Diz primeiro
o autor do autoengano calculado
que é vítima de quem massacra
a fim de massacrar
sem sequer
pela real vítima ser tocado

Diz só para si o ressentido
que sua fome de vingança
coroa seu crime
como justiça
que sublima por todos
e deságua em todos
sua mágoa –
seu ataque covarde de ferido

Há quem discurse contra o ódio
e em seu concurso
odeia todo aquele que não amar
da maneira exata do discurso

( há quem tanto ame
o rigor da palavra
que esmaga aquele
que – segundo ele-
não sabe usá-la )

Há os que tanto amam a tradição
que são fieis à própria traição
que usurpam surrupiam
do humano sua inteira condição
a fim de adorar – para aquém do humano-
uma sacrossanta instituição

Proclama uma concreta verdade dissoluta
que uma boa intenção
é uma pedra bruta
nua
que sobre uma cabeça humana
em moral gravidade flutua.

Sem dúvida

Talvez a moça que sorriu onde eu hesitei
e que virou na esquina do tempo
para nunca mais
fosse o amor da minha vida
talvez a palavra não proferida no momento da dúvida
fosse a exclamação da resposta
para a conciliação das perguntas
que esgotamos todas as chances
de nunca nos fazer
talvez o tempo perdido
no trabalho por um prazer
em tão breve tempo esgotado
pudesse ultrapassar eternamente
a satisfação de um orgasmo nem lembrado
talvez o rosto em que eu me vi no espelho
seja apenas a sombra do reflexo
de um eu ignorado.

Mas é certo que em você
caricatura
do meu sonho trespassado
que o tempo me trouxe
e que eu agarrei
como troféu de um erro mais acertado
seja a exclamação
mais alegre e furibunda
do meu assassinato
do acaso.

Metástase

Assim como o rancor
o perdão penetra pelas brechas
um a outro irmanados
combatendo a doença
com o mesmo veneno
que a forjou
coroando de ódio ressentido
e redimido
cada gesto martirizado
que o amor nos impele.

Assim como o ódio,
o amor nada esquece:
nenhuma palavra gesto ação
nenhum silêncio indiferença omissão.
O amor como o ódio
tudo guarda
na memória do amanhã
que recria o perdão
a toda a doença
que nos mantém de pé
para abençoar quem nos infecta
para esgarçar nossa infecção

Assim como a cura
o tumor nos enobrece.

Voz

 

Os que tem voz e se calam
berram seu silêncio
na voz amordaçada
dos que não sabem o que dizer
Os que tem voz e se calam
são ditados pelas vozes surdas
que os engolem

Os que falam e nada dizem
são ouvidos
pelos que tem voz e se calam-
ambos gritam
a ignorância
de sua surdez
que abre ouvidos e olhos
à mudez que nos limita

Os que falam-
por algo, alguém
sem mesmo saber o que dizem
ecoam uma tentativa
que tenta pronunciar
a palavra viva que nos habita

O espelho

Narciso jamais se olha .
Narciso acha feio o reflexo
que não corresponde à imagem
que se cria.
Narciso não se ama.
Antes odeia a realidade do reflexo que nega.
Narciso se despedaça
no reflexo do olhar do outro que o enxerga
e cria.
Assim morre narciso- que jamais se viu
e nasce amor
que o contempla e mata.

Memória terna de um feto eterno

Não sei bem quando começou a vida.
Quando inseminado ou gerado
ou sucessivamente transformado
pela primeira carícia
ou primeiro  abandono
ou primeira morte que me ressuscita.
Não sei bem quando interrompida a morte
de antes de eu nascido –
quando querido
ou gestado ao acaso
de um prazer efêmero
que se transforma em existência-
longa, se considerar dois segundos de orgasmo
-curta, a se considerar a eternidade
-exata,  a se considerar o desejo
de uma amorosa vontade de eternidade
-definitiva, a se considerar a marca
de um simples segundo ou tantos anos
da respiração em mim sempre presente
 da mãe que me aleitava
ou sufocava em sua ponderada negativa.
Não sei bem quando vivi ou quanto vivi
imerso em dúvida do útero
que me envolvia
ou da vida que de mim se escondia
ou do fim que me encobria.
Sei bem – que quando vivo-
sempre algo me matava
um esboço de carícia me embalava
alguém de mim falava
alguém por mim falava
em todos os lugares
onde eu não estava.
E me calava.
Lembro-me bem
quando uma mão generosa me retirou
do conforto onde nunca estive
mas não sei bem se para a vida
ou se para retornar ao nada
onde ninguém gerado
jamais vive.

Entrega

Nenhum prazer maior que cuidar
que arrancar algo que dói ao ponto
de se criar o que não se tem
Nenhum prazer maior que se despossuir
ao ponto de se privar de todo prazer imediato
pela recompensa terna e eterna do cuidado mesmo
pela recompensa de uma gratidão
que não se espera jamais
Nenhum prazer maior que olhar pra você
e encher o olhar de uma ação de um cuidado
que se estende até onde nenhum olhar alcança
– e talvez você nem veja.

Fênix

Uma lágrima salga o sorriso
que nasce de sua queda iminente
Um sorriso ampara uma lágrima
que se evapora em um instante aparente
Uma gota de sêmen 
enterra o desejo
que se esgota
em ressurreição permanente
O olho mira a vontade
de ser olhado
sorvendo a imagem
de uma miragem evidente
enquanto alguém espera
uma verdade frágil
como um cristal que se quebra
por dentro da gente
como algo alguém um corpo
que some ou se esquece
qual ilusão transparente .

Memória

Lembro-me exatamente de tudo
que não aconteceu:
recomponho lugares pessoas situações inexatas
aos moldes do lugar nenhum
da desmemória
que cria o sabor dos contrapesos
de uma realidade que teima em brotar
de um sonho fugidio

Lembro-se de fugir do sonho mesmo
para atropelar uma realidade criada
pelos próprios limites
e criar minhas próprias frustrações
aos moldes do meu sonho negado

Lembro-se com detalhes, diálogos, humilhações
de brigas futuras
que jamais aconteceram ou acontecerão
com os amigos mais próximos
com amores mais fecundos
de desejos mais inexatos
brigas em que luto
com a água turva de meus afetos
mais intimamente odiados
pelo apego desesperado
a todos eles
pelo apego desesperado
ao medo de me perder de todos
que me prendem
ao amor que me crio
e me esmaga

Lembro-me de odiar em silêncio
tudo que amo e me amedronta
a fim de destruir em mim
minha dependência
ao que me mantém vivo
e esmaga cotidianamente

Não preciso me lembrar
de sorrir cordialmente
sempre
no bom dia
a todo aquele
que finca dentro de mim
tudo o que me desespera

Afirmação

Estendo a mão à tua presença negada
e ela ampara tua ausência
como a um broto que nasce eternamente
de sua espera:

nasce para dentro de mim
o embrião do ideal
que me amamenta
com o veneno
de tua gênese fabricada

Nego enfim o leite
ao cadáver recém nascido
da tua existência inventada
como a fincar a raiz eternamente
na tua morte negada