Não por acaso

Não se bastam as coisas em serem coisas
mesmo não havendo nelas a consciência
de serem mais que coisas.
Não se basta a consciência
em perceber as coisas
para aquém do além do que elas são.
Não se basta o acaso de haver vida na terra
para além das probabilidades infinitas
de não vida em bilhões de outros planetas.
Não se basta o acaso de ter visto você
e me encantado ou mesmo lhe desejado
ou mesmo não entender o fundamento
do desejo que me é negado
mesmo que inventado.
Não se basta a invenção da vontade
sem a origem inexplicada
da construção da vontade.
Não se basta o gesto mecânico
de uma doação
sem a explicação inventada
de sua verdade.
Não se basta a verdade
sem a construção afetiva
que traduz sua vontade.
Não se basta a consciência
sem a ponte que a liga
às coisas
que jamais são apenas coisas.
Não se basta alguém em se saber
algo em meio ao acaso das coisas
que não são apenas coisas
que vivem em nós
não por acaso.

Bala perdida

Mirei precisamente na ideia do ideal.
Acertei furtivamente no erro da intenção.
Corrompi idealmente a vontade à ação.
Suicidei o acerto à ressurreição de seu mal.
A bala matou seu caminho
refez seu destino, acertando em mim
seu acaso triunfal:
acaso engatilhado
por minha mão
que batizou a ação do cadáver
da vítima que em mim jaz
em meu erro fatal.
Jaz em mim
o acaso engatilhado
em meu ideal desarmado
em ideal intenção de ação
sempre pronto a me matar
em um outro
que jamais sobrevive
a meu erro lisonjeado.

Nascer não acaba

Nascer não acaba:
o parto é permanente:
nasce novamente
a mãe no esboço do filho
e em seu desenho sempre inconcluso
que foge à sua carícia.
Nasce um novo feto sempre incompleto
do abandono da mãe. Do abandono à mãe.
Nasce a cada abandono sucessivo
um novo parto doloroso
de permanente nascimento:
nasce no desejo a vontade
de renascer nos braços de quem se ama
que abraça o feto de sua intenção
como quem embala
o sono da morte
a fim de que ela não acorde.
Desperta a morte que vai parir
a ressurreição permanente
de seus filhos
no desejo rejeitado
no abandono consumado
no afeto derrotado
no ideal destroçado
que sempre renascem
embalados
pela morte ausente
que os aleita:
morre a morte
permanentemente
no olho da criança
que reconhece a mãe que o alimenta.
Morre a morte
no abandono que se inventa.
Nasce na memória do que não foi
a esperança que se tenta
no filho da ação incompleta
que nos alimenta.
Nascer não acaba.
A todo tempo
a morte é quem desaba.

Fofoca

Me disseram que pouco sabem dele
mas que não confiam no pouco que sabem
e assim baixinho
me disseram mal do pouco que sabem
porque saber muito é sempre um engano
sobre quem se sabe pouco.
Muito me disseram
sobre o pouco que sei deles
pois falar de um outro é sempre um engano
sincero
sobre o muito que nos sabemos.
Porém me gritou alto
o sussurro com que se acusavam
em sua humilde sinceridade
acenando ao nosso mútuo engano
sobre o pouco que sabem dele
e sobre o pouco que confiam
no pouco que sabem dele.
Não me disseram da felicidade
sobre o pouco dele que sabemos juntos
nesta comunhão em silêncio tácito
sobre o muito que dele dissemos.
Não me disseram que ele talvez fosse você
a quem de fato pouco conhecemos.
Mas pouco sabemos do que dizemos
e por isto falamos:
para descobrir mais
sobre o muito que dizemos
sobre o nada que sabemos.

Apesar

Apesar da inveja que te tenho
te desejo o bem.
Talvez um bem didático
destes que ensinem valores
superiores ao sucesso fácil
-neste em que não me encaixo
-apesar do discurso em que não me acho-
e que te ensine a perder com garbo-
esta perda ganha que sempre me faço.
Apesar do amor em que me oferto
e que me negas
te desejo o bem –
talvez um bem nefasto
destes que te ensinem a amar
pela negação da coisa amada-
tão distinto desta doação que digo-
desta a que no vazio
sempre me abraço.
Apesar da mágoa que me embala
sempre me desfaço
no desenho do discurso
que esboça a mancha turva
do meu traço.
Apesar de mim mesmo
sempre traço no outro
a virtude do perdão
ao meu complacente descompasso.

Peso

O que sinto ou melhor o que creio sentir
da natureza invisível do que sinto
é como uma força da gravidade sem chão
que me suga para um centro intangível
mas inarredável na criação a que me obrigo
inarredável na colisão em que me abrigo
O que sinto
é como uma tentativa fracassada de suicídio
à espera desesperada
de permanente ressurreição.

Herança

Está registrado na maneira que te olho
a história de olhares de gerações
que espiam mortas
a maneira que as ressuscito.
Pesa no meu gesto de carícia
o afeto incontido de construções genéticas
de DNA’s inteiros que evoluíram
a ponto de domesticar o tacape
pela mão que acaricia
o atrevimento de minha intenção.
Nos caninos afiados
repousa o sangue
domesticado e invisível
da vítima que saboreio.
Repousa
no gesto desesperado do suicida
a esperança da retomada do gesto nunca concluído
de um fim que não se acaba.
Está registrado na maneira
com que vejo que me olhas
o gesto que embala a história dos olhos
que se criam a cada renovação
da translúcida cegueira que os alimenta.

Ao que desejo

E se pudesse não desejar o que desejo?
Se pudesse não desejar o que desejo
em nome de um desejo maior?
Onde achar a origem do que move
a ação de um desejo maior?
Como medir o tamanho de um desejo?
”Saciarás o desejo do próximo”
dizem os gozosos generosos do bem alheio.
Mas como medir a ação moral
do desejo de saciar o desejo do outro
com o de ensinar o que é um bom desejo
ao outro em que nos refletimos
a fome difusa de um desejo desencontrado?
O que desejar quando o desejo é um entrave
a um caminho que não se acha?
A doação mesma tem suas perguntas
que jamais saciam seu desejo de resposta:
sua fome é sua resposta
que sempre nos devora.

Delícias da insatisfação

O que gosto em você
é alguma ideia de você:
um dedo, uma orelha, um pensamento
um olhar furtivo que nunca encontra seu dentro.
O que amo e odeio no amor
é o ideal de seu uso e abuso:
uma palavra, gesto, corpo inexato
uma intenção esquiva
que jamais colide com seu pleno momento.
O que sobra na intenção
é a ação que nunca traduz
a execução de seu entendimento
ou o que não se basta
no desejo satisfeito
que sempre ejacula
seu sempre irrisório provimento.
O que jamais se enche de tudo
é o que sobra neste deleitável tormento.

Ouça

É possível fechar os olhos
– não os ouvidos.
Nem mesmo os surdos
que berram o silêncio.
É possível não ver a forma
que engana nossa miopia
ou enxergar a cegueira
que tateia nossa visão.
Mas os ouvidos não se calam
pelas mãos que nunca impedem
toda música que nos atravessa
ou a palavra que nos expressa
ou todo som que nos inquieta.
É possível fechar o corpo
mas nunca se cala
a voz que nos acessa.