Leve

Leve é o planeta
que dança em sua órbita
ou a pluma
que toca o chão
que a acaricia.
Leve é cada falta diária
que nos toca
em cada presença
ou sorriso negado
como a leve formiga
que nos pica e é esmagada
sob o peso da leveza de nossa
quase inconsciente indiferença.
Bem leve o tempo que nos cura
da picada cotidiana
ou o chão que nos ampara
na queda nossa de cada dia
ou a picada quase sem peso
que indiferentes oferecemos
à primeira presa
que nos sorria.
Leve, tão leve
a ausência do teu sorriso
cujo peso
quase não se sentia.
Esmaga-se ou anula-se assim
o peso de um corpo em outro corpo
com a leveza de uma picada
ou do sorriso
cujo peso
agora se percebia.

Anatomia utópica de uma depressão

Nenhum dedo se move
em obediência à revolta
contra a condenação da perpétua mudança.
Os olhos miram por dentro as pálpebras fechadas
que roçam a criação de uma luz escura
que cura a angústia da fome de contornos claros
de um foco que lambe os olhos
que se contentam em apenas enxergar as formas precisas
da indefinição.
Nem mesmo o tédio do desejo de morrer,
que esta é uma ação de amor
não correspondido à vida.
A depressão é a cura para a angústia
da criação extenuante de vida e mais vida.
Mas a doença clara- a vida clara- adentra
por entre as pálpebras mal cerradas,
se move
por entre os lençóis que roçam
a pele da lembrança de um corpo
a pele da memória do toque.
E os dedos se movem
E os olhos se abrem:
não há buraco
que se esconda do céu
que oprime
sua falta de lugar.

Graça

Que recompensa há na casa silenciosa
após um dia de trabalho após uma vida de contas
que se pagam do salário que salga o broto
de um corpo adormecido pelo tempo?
Após um dia de esforço
o quarto que o espera
vazio de sentido
vazio do desejo da mulher que o ama
com o afeto de quem lhe rega
como uma planta
que alimenta a água
que o espalha.
Após a vida de esforços
o sorriso do filho que se vai
colher os cansaços do pai
que sacia sua sede de perguntas
no broto da água que jamais permanece
no líquido repouso de quem refresca.
Que recompensa há no milagre da matéria viva
que jamais reponde sequer
à pergunta do prazer
que se espalha como água
que jamais sacia
a sede do seu jarro?
Nem tendo feito o que se devia
doendo como se havia
repousa esta água cristalina
que à própria paz inebria.
Jorra de um outro
e mais outro corpo
a graça
que na sede se cria.

Visível

Não haverá
olhos suficientes
para enxergar o gesto heroico
que ainda não tiveste
e que preparas na solidão onisciente
do teu quarto:
só o esquecimento te acompanha
na memória de cada gesto não registrado
na presença de um presente que nunca passa.
Ainda porém alimentas teu cão ou teu filho
que te olham na cotidiana epifania da gratidão.
Ainda porém aleitas a lembrança
da mãe ou do amigo perdidos
no eterno futuro do passado de um gesto
que jamais se verá –
e todos estes sempre serão olhos presentes
que se alimentam mesmo de tudo que ainda não destes.
Não há olhos ausentes
que não deixam de se ver
em cada gesto
nunca ainda não consumado.

O homem bom

Era vaidoso de sua generosidade;
devorava o mérito de sua contribuição
projetando a retribuição que jamais receberia
no cálculo de sua redenção.
Comia transcendências,
prescindia do divino
para devorar sua fome insaciada
na ingratidão daqueles
em que vomitava perdão.
Sabia ao certo
do desacerto
que é ser bom,
como um penduricalho
em roupa simples e surrada,
quase avessa a qualquer beleza
que a excede.
Sentia-se assim
como uma bijuteria
que imita o brilho
de uma joia inacessível a todos,
a ele inclusive.
Invejava, entredentes,
a nudez sem brilho
dos que se vestiam
de seus apetites,
que coroavam a joia opaca
de seus desejos mais simples;
invejava o criminoso abnegado
que se contentava com o orgulho
da sombra assassina.
E, orgulhoso de sua inveja,
se martirizava em êxtase
com seu crime inconfessado.

Refúgio

Em uma balsa cabe
incomodamente todo um país
em doze , treze pessoas
que acomodam dentro delas
o incômodo de um lar exilado,
desterrado da liberdade de caminhar
em solo que não seja todo este oceano
que o separa de seus pés.
Em um homem
cabe o aceno desesperado
de um chão.
Cabe incomodamente
o oceano em que naufragam seus pés
que caminham por onde rejeitam
sua possibilidade de chão,
onde caminham seus mortos e mortes
que respiram por onde seus olhos os veem
e escondem.
Em um chão
cabe um homem
que caminha e respira
por todo um povo afogado
pelo solo firme da ausência
de lugares países
onde nada mais cabe
além da indiferença.
Em um homem
cabe a exílio de sua humanidade
Cabe a mão
que resgata do oceano
sua possibilidade de chão
que se afunda
em possibilidade de céu.

Anti-espanto

O céu não me maravilha
com seu azul resultado de luzes
que se comprimem numa única cor tediosa.
Me entediam as estrelas noturnas
já mortas pela demora da velocidade da luz
que as inventa num presente sempre passado.
Tampouco me alenta mais a brisa da madrugada
que o ar condicionado
que assopra inspiração
do leito lírico do meu quarto
centro dos lugares frios onde não repouso.
A rosa resplandescente que implora por adoração
entedia minha contemplação
que só se encanta na brevidade
do apelo desesperado de sua beleza-
que murcha na visão de uma vaidade estática.
Me encantam outros enganos desnaturados da natureza:
a falsa promessa de um afeto eterno que não murcha
no ideal que jamais se consuma
nascido póstumo em seu engano;
o céu pintado pela miopia do artista
que aumenta as estrelas mortas
ressuscitando seu engodo para um apelo de vida
que jorra nas tintas da criação de um equívoco mais lírico;
a febre que arranca o conforto do clima que apascenta
a luz estéril de uma saúde que calcula os instantes do meu tédio;
o espinho da beleza óbvia e tediosa da rosa que arranca do meu sangue
um vermelho mais vivo, lânguido e permanente
que escorre da minha precariedade em eterno botão.

Não colho da natureza
qualquer espanto que desnature
minha invenção em prosa filistina.
Não agradeço pela vida
a não ser pelo esboço
de algo mais que ela não ensina.

Indo

A cada dia o sol se levanta
e cumpre sua função
sem nada saber da intenção
que o abriga.
A cada instante uma mosca
gira em torno da luz
sem saber da iminente
morte que a habita.
Um leão mata um cervo
para saciar a fome de sua natureza
sem laivos de crueldade:
cumpre sua função
na cadeia natural
que o limita.
Só você, bicho estranho
se alimenta da incerteza
da razão de se levantar
para um novo dia
que gira em torno da morte
que o incita à vida
que mata seu desejo de matar
em nome da cadeia da razão
que o liberta e tramita
pelas leis colocadas
pela criação e superação
da tua natureza volátil,
avessa tantas vezes
à tua vontade
que nunca obedece
a um desejo tão confundido
quase desaparecido
na sua recorrente recriação.
Só você, bicho estranho
habita a cadeia desnaturada
que cria sua liberdade de ação
para além da prisão
da sua desnatureza inventada.
Só você, cruel, bom, generoso
nos equívocos de tua boa ação,
impõe sua dúvida como método
e segue em frente por não saber o porquê.
Só você, sol da sua fome
mosca e leão
que se come a cada dia
em torno do buraco escuro
que a ilumina e desabriga.

Montagem

Fabrica-se um ser humano pelas faltas que o amparam:
a ausência de meios de sobrevivência do recém-nascido
o ensina a amar a mãe que o alimenta;
a ausência do pai omisso ensinam
a consciência da necessidade do amor
que a criança cria em seu primeiro esboço de adulto;
o que falta no primeiro amor negado do adolescente
faz sobrar a rejeição que ele inutilmente nega
como oferta de aprendizagem do não
que limita sua fome
e alimenta sua doação.
Fabrica-se a falta pela necessidade
que aleita o prazer insaciável do humano:
óculos que permitem ver o que a miopia
ensina a não olhar para aquém do todo
que compõe algo ou alguém;
rodas que caminham distâncias imensuráveis
entre paisagens de uma pessoa para si mesma
que enfim se enxerga e acha no vizinho
em caminho incompleto;
cabelos implantados em áreas de afeto não irrigado;
silicones em murchas capacidades de tocar;
próteses penianas que se enchem
da ausência de alguém que se esvai
na flácida lembrança do ideal nunca alcançado.
Fabrica-se um ser humano pelas faltas que o revelam:
o primeiro sorriso da criança que traduz
o prazer sem causa de haver nascido;
o último beijo ainda não dado a quem se ama
na memória do redimido.

Confinamentos

Várias são as prisões voluntárias
que pavimentam o caminho da liberdade:
os passos dentro de um quarto passeiam
a paisagem equidistante
entre o quadro da janela
e o que foge e sobra
à imaginação.
Vários os confinamentos livres:
ambientes de trabalho, namoros, casamentos, amizades, rejeições e aspirações
são companheiros de cela escolhida de onde escolhemos
os desejos herdados pela tradição que nos escolhe.
Alguma coisa na encruzilhada cheira a algo nunca visto
que abre a porta do quarto ou voa para fora da janela
e se espatifa no chão do céu de sua libertação.
Vários são os tédios voluntários
que pavimentam os cansaços da liberdade:
o céu do teto do quarto visto da cama
é menos ilusório que o prisma
que tinge de azul o céu
da sobra de universo
que não vemos.
O céu do teto do quarto visto
pelo sorriso do filho
cercado pelo berço
abre o resto de universo
que não vemos
e criamos.