Descansa-se de uma atividade
pela sua contrária:
o esforço físico
pelo intelectual;
o fracasso do desejo consciente
pelo sonho imaterial do sono
ou no ideal projetado no futuro;
o futuro que não chega
pelo tempo morto ganho no ócio
do presente ou na memória
que não descansa o que viveu
ou deixou de acontecer;
os arroubos da poesia
pela lucidez calma e enganosa da prosa;
a vida material
pelo ideal tátil do espírito;
o nada inexistente
pelo tudo que o define e extingue
em eterna ressurreição permanente
de uma coisa por outra
que nunca morrem
que nunca se cansam de não morrer.
Olhar
Não enxerga o mesmo um homem
que os olhos de um falcão
ou de um cão.
A paisagem é uma miragem
que se refaz a cada mirada
de cada espécie.
Não olha as coisas
uma criança
com os mesmos olhos
do que quer um homem.
O desejo é uma miragem
que se refaz a cada idade.
Não se encantam os olhos
sem a ajuda de outros olhos
que os ensinam a olhar;
muitos se encantam pelo encanto
do que alheios olhos olham
e jamais enxergam
a própria cegueira;
cegueira
cuja íntima consciência
é própria dos que enfim
aprendem a ver.
A paisagem é um olhar
que se refaz
a cada toque
que a molda.
Fiel
Fui fiel a uma promessa que me traiu.
A promessa tinha corpo, ideal
formato de uma coisa
que eu nomeei.
O nome não se colou à coisa,
o corpo mudou-se com o tempo
o tempo desnudou o falso ideal
que eu colei ao corpo da coisa.
Fui fiel a um nome que criei
para criar a minha fidelidade
à traição permanente das coisas.
Hoje, tento ser fiel a mim mesmo
e me traio conscientemente
como coisa a quem colaram nome, ideal
e corpo que se transforma
ao sabor do desejo de quem não me define.
Sou fiel a uma promessa que me trai.
Do que não é exatamente amor
Não há amor na vaca que não se doa
para ser o bife que a mãe tempera
com o afeto de doação
ao filho que ama.
Não é exatamente amor
ou doação ao próximo
o desejo que mastiga
o bife do desejo consumado
de um outro corpo
de um outro ouvido
que escuta e acaricia
a voz da fome do teu desejo.
Não é absoluto o amor
que se doa em sacrifício
e se percebe vaidoso
do heroísmo de sua doação
e requer o troco
de seu valor na história,
assim como
aquele do pai
que cria seu filho
para uma crucificação pública
com a intenção perpetuada em sacrifício
de celebração de seu nome.
É menos que amado
o pássaro preso na gaiola
que atrofia seu voo
para encantar a fome de beleza
que condena sua liberdade
aos olhos de quem o prende.
Seria talvez quem ama
quem se prende ou se deixa
morar no abate
ao seu carrasco que não enxerga beleza
em seu heroísmo silencioso
de quem não aprendeu se amar.
Tudo somado, nada seja amor de todo.
Talvez amor seja uma ignorância de seu propósito
como a gratidão do pássaro,
cujo voo inconscientemente ceifado
se rende ao agradecimento
pelo alpiste de seu carcereiro.
Politicamente correto
Uma infâmia lânguida e furtiva
percorre a pele do elogio que lhe faço
como um soco que acaricia a carícia
em que lhe afago.
Já não prezo o que lhe quero
não mais amo o que desejo.
Aninho em mim
aninho em nós
um cupim
que devora o afeto
que em palavra enalteço.
Resta este gesto mecânico de gostar
como um reaprendizado eterno
do que se perdeu
e jamais retorna
por esgotamento de começo.
Outras palavras, outras pessoas
outros filhos, outros tempos
outras pontes
circunvagam à margem do precipício
que nos fazem andar
rumo à invenção do caminho
que nos percorre o tropeço.
Vamos de mãos dadas,
pronunciando cada palavra
do silêncio
que engole nossa falha de diálogo
Vamos de palavra atada
sussurrando para dentro
a criação
de nossa mais nobre intenção.
Nascemos
Nascemos
Nascemos
no filho em que crescemos
ou indefinidamente
na espera pelo filho
que jamais teremos.
Nascemos na perda do pai
em que morremos.
Nascemos na traição do amigo
em que nos enterramos
ressuscitando no perdão
que rompe o hímen
do que vivemos.
Nascemos ainda
na memória criada
do pai , amigo, filho
que talvez jamais conhecemos.
Nascemos na ausência tátil
de uma perda
que tatua na carne da história
o passado em que estamos.
Nascemos sempre
na agonia deste eterno presente
que em vão matamos.
Nascemos na palavra viva e furtiva
que nos criamos
E na boca porosa em que nos dizemos
E na ação difusa
que nos enganamos:
nasce
onde jaz sempre vivo
o que nunca entendemos.
Não importa:
nascemos mais onde não nos sabemos:
no gesto de afeto que não merecemos
a contragosto à vida nos empurrando.
Nascemos sobretudo
na cega oferta de amor
em que nos perdemos.
Indiferença
Nenhum grito ecoa tanto
aos nossos ouvidos
quanto aquele silencioso
que zumbia à nossa surdez voluntária
que berrava à nossa mudez ordinária:
o grito da criança morta
por nossa cegueira abusiva
o grito da ajuda voluntária
calado
por nossa consciência tranquila
o grito da miséria viva
por nossa ausência
amortecida
pela voz do pior suicida
que cala sua humanidade
ainda em vida
Gratuidade
Há uma desrazão fundamental
no abraço permanente que uma mãe
oferece ao filho assassino:
como se ela gerasse o filho
permanentemente
a fim de lhe restituir gratuitamente
a vida que ele nega
quando a arrancou de outro.
Há no amor irracional da mãe
ao filho assassino
a geração do Deus
que criamos
e que se doa eternamente
à negação de nossa morte.
Há no abraço da mãe
ao filho assassino
a desrazão fundamental
que nos gera a vida.
O infinito
É pequena a vastidão do universo
diante do afeto de dois olhos que veem
sua mínima parte do infinito
em outros dois olhos que amam
e que enxergam o horizonte de um fim
que não se acaba
É mínimo o horizonte eterno do tempo
diante da mortalidade humana
que tatua no instante
a breve eternidade do toque
a quem ama
É vazio o infinito
que não se pensa
não se toca
e não ama.
Tempo
Passo pela rua em que nasci.
Rua mudada cuja mudança
muda meu passado reinventado
Nada me lembro que não recrie
ou confunda
na memória em que me invento.
A arquitetura moderna de rua hoje
habita a ruína da lembrança
de meu futuro transfigurado.
Rua deserta na madrugada
onde agora nada passa
em companhia da memória
de muitos que passaram e passarão
para desassossego da impermanência
de um presente sossegado.
Antes da rua deserta em que nasci
a sombra lembrada da imortalidade
para antes de mim:
nascer não é passado:
nascer é para sempre estar
ao presente atado, todo o tempo
furtivamente atormentado.