O sorriso tatuado na tentativa de alegria
se projeta na foto da imagem congelada
de uma intenção que se eterniza apenas
na intenção de uma alegria.
O sorriso fotografado
esconde sua intenção
do que sequer sabe do que se ri
e se revela como tortura alegre
aos que se riem da foto
ou se comovem – ou sequer se movem-
pelo sorriso
que não é o deles
sequer mesmo
é o de quem ri na imagem
agora sequer rasgada
pelo virtual que não se toca:
virtualidade eternizada
O sorriso na foto
chora ao tentar se eternizar
como alegria fabricada
e se tortura
pelo direito de mentir sua satisfação
até que o fotografado
se convença da mentira
que cobre a imagem projetada
de sua felicidade congelada
na foto que impede
o movimento de sua intenção.
O sorriso fotografado
parece
e no parecer
perece
em ação projetada.
O fotógrafo da selfie
não sorri
de seu sorriso
que não ri
(Toda própria imagem, um registro morto
de uma eternidade idealizada)
Utopia fotografada:
o fotógrafo se desola e se descola
e olha enfim no outro
a sombra de sua imagem revelada.
Presságio
Uma brisa acalenta a violência do desejo
embala o norte do desespero compassado
da espera do precipício:
sentidos voam, objetos somem,
miopias se enxergam.
O tempo desmorona
foge de seu rumo.
Por certo, o mergulho heroico
no equívoco
que purgará o acerto estéril.
Uma brisa violenta
a erupção do desejo:
nenhum vulcão à vista.
Apenas a lava humana
de seu vivo enterro.
O que me falta
O que me falta não me basta:
o que me falta
sustenta a fome
de abocanhar a ausência
de sorver o que me rejeita
de agarrar meu abandono
até lapidar a escultura
que revele
a falta que me alimenta.
O que me falta não me basta
O que me basta me torna falta
O que me falta
está aquém do que quero
que é enraizar a falta
no feto
do que me sobra:
meu vazio
que espia tudo
que o envolve
questiona
– e nega.
O que me falta não se olha
desprezando o monumento
que dele ergui.
Eu sou o vômito fecundo
do que me falta
sou a ausência tátil
do que me falta.
Lá
Preso ao que não fui
percorro a cela da liberdade
de um eterno onde poderia ter sido:
não como um não lugar estático
mas como a pena a que me condeno
de me mover empurrando as grades
com que me cerco
para outra prisão móvel
na tentativa exasperada
de ser mais do que sou.
Cercados pela tortura do que não existe
torturados pela mágoa do que deixou de existir
apanhamos o gesto assassinado na intenção
e nos tocamos
através das grades
com que cercamos
nossa libertação.
Quase:
o nome da condenação
que nos redime
por querer sempre além
do pretenso fracasso
que nos empurra
para a comunhão.
Presos os que creem
ter chegado a um lugar.
Autópsia
Dissecamos assim o cadáver de uma relação:
separamos as partes de sua morte:
as palavras não ditas, as palavras malditas
os gestos não consumados
os gestos esterilizados
por intenções não articuladas
as traições cotidianas
sempre fiéis ao modo torto de amar
que não se ajustam ao objeto sujeito
à criação do amor:
o corpo do amor
sujeito ao seu fim:
o cadáver do amor
ressuscitado
na próxima autópsia.
Dissecamos assim
o cadáver pulsante
de uma amor não consumado
nem na intenção nem na ação:
separamos as partes de sua vida em espera:
as palavras ditas e não compreendidas
as palavras benditas e escondidas
pela insensibilidade dos gestos de consumo
As intenções exasperadas pela esperança
A fidelidade permanente à verdade
que espanta quem a recebe
A traição da verdade
sempre fiel ao desencontro
entre as partes que a enxergam
nunca ao mesmo tempo
nunca ao mesmo modo
nunca ao mesmo desejo
mas
sempre fiéis
ao modo torto de amar
que não se ajustam
ao objeto sujeito
à criação do amor
sujeito ao seu objeto:
o cadáver
sempre ressuscitado
da vontade de sempre amar.
Dissecamos assim o cadáver da morte
assassinada sempre por uma vida em espera.
Nu
Nu
Nenhuma nudez será suficiente
para encobrir o que veste
sua intenção.
Não há alma que sacie
o fundo da sensação
do toque da superfície
de uma pele que não se esgota
nem corpo que se acabe
no movimento
que reveste e esconde
a pele do fundo de seu desejo.
Cria-se pelo toque
o objeto que movimenta
a mão que investiga
seu gesto que esculpe
sua cega intenção.
Cria-se no gesto
que desnuda o vazio
o objeto
do desenho do toque
que acaricia
e violenta a questão:
não há uso sem abuso
não há olhar ou toque ou criação
que não assassinem
o ideal de uma ação.
Não há nudez
que não vista
o corpo de uma ressurreição.
Conceito prático
Inventamos amor
e amor nos inventa.
Amor é humana invenção
que cria humanidade
que mesmo no fim
amadurece
sua puberdade.
Amor é humana criação
real imaginário
que nos cria mata vive embala
para além da invenção.
Amor é o gestual de uma farsa
que se interpreta e desata
para além
da mais real realidade.
Ir
Quando nenhuma volta
acalma teu desejo de partida
quando todas as partidas
chegam ao lugar nenhum
do prazer que se encerra
em sua chegada.
Quando se vive
entre a espera
da vinda de um gesto
que se indefine
e o gesto que não vem
cujo aceno
sequer tem o carinho
de uma bofetada.
Quando o que se vê
não sacia a desesperada paz
de uma cegueira.
Quando o quando
perde seu lugar de morada.
Talvez seja tarde
e não se chegue
ao certo
ao lugar de intenção
mas por certo se salva
após apodrecida pela razão,
a maturidade
da fé cega de uma criança
que olha para além
dos lugares
que desabrigam
a viagem
de tua eterna e presente
partida.
A causa final
A estátua está pronta
dentro da pedra
tocada pelo artista.
A pedra está pronta
dentro do corpo
esculpida pela mão
do sentido
que não se toca.
Uma onda se esculpe
pelo movimento que a dissolve
e se reergue
pela memória do olhar
que a absorve.
A estátua se move
dentro da pedra
esculpida
no corpo do artista
qual onda movida
por petrificado
sopro de vida.
poema claro
Criava pessoas
à imagem e semelhança
do personagem que para si
também se criava.
Não criava afetos, amores
Antes criava distâncias
inarredáveis
entre ódios, ausências ou indiferenças
que jamais tocava como realidade.
Descriava o medo de entrega
por pavor da covardia
Pregava no deserto
a sede que o justificava
Não negava o deserto
mas sorvia a água que não achava
e que banhava sua suicida intenção
que sempre o ressuscitava
Deliberadamente cego à cegueira
da luz excessiva
que turva a visão
enxergava para dentro do toque da criação
que encastelava sua fome de clareza
à sombra do abraço que o esfaqueava
Recriava a traição
por fiel princípio
de vingança:
fielmente
amando o traidor
Criava pontes de areia
que naufragavam na criação
enquanto estátuas de mármore
lhe sorriam
– soberbas
plenas de inação.