semiperdas

Perder algo
como lembrança póstuma
da aprendizagem de sua utilidade:
um sapato , uma casa , um conforto

Perder algo como ganho afetivo
que encanta uma desnecessidade:
uma jóia , um brilho,
uma pele que escama um tempo
ganho na construção de seu vazio.
Perder o indefinido
a fim de rever os ganhos:
uma palavra , gesto esquecido ,
ainda não perdido
porque ainda não dado .
Perder tudo
como ganho do sentido da perda:
alguém
algo de pertencido
mas jamais achado de todo ;
algo sentido e vivido .
doído
porque jamais de todo
perdido.

Personagens para um só comediante

Tal qual Pierrot que aprisiona a paixão
que se cria
abraçando a suposta rejeição
a quem se doa
para não libertar o amor
que impedisse o ideal de mais amar.
Qual Arlequim que engana o que sente
debochando da conquista pela covardia articulada
que devora o medo de sua doação
e se ri,
engolindo a lágrima da inconsequência
de como ama.
Ou como Colombina que ama sem causa
inconsequente apaixonada pelo amor
ignorando sempre o ser, o objeto que ama
Tal qual um amador
amando sua experimentada inexperiência
vestindo devorando aprisionando libertando
sempre um novo personagem
nova máscara
( onde a pessoa?)
para uma velha e tão real farsa
que renova o ideal
de sua intenção.

Como gostar

Gosta de mim?
Mas como gosta?
Como um adorno à sombra de si mesmo
que se projeta em alguém
moldado à imagem e semelhança
do ideal do que lhe falta?
Gosta de mim? Me ama?
Como o amor que é conhecer
para além do uso,
como responde o Santo?
Mas onde, quando, no que
você me conhece?
Você se reconhece em mim?
Se reconhecer no que se trai,
aonde você busca se esconder
porque se achar
é matar a busca
e buscar
é o mesmo que amar.
Você se desencontra em mim?
Se sim, gosta de mim.
Se perde em mim?
Se sim, há amor possível.

Graça

Riu-se do riso da criança
que comia ,dela inocente ,
graciosamente ,
sua fome da graça.
Chorou pelo esgar do homem
que se ria da desgraça.
Riu-se da lágrima
que lavava seu sorriso.
Sorriu
pelo choro do homem
que molhava sua sede na Graça .

Luz escura

Você mente.
Adorna sua mentira
com boa intenção , talento ,
toda sorte de virtude e beleza .
Sua mentira é acolhida ,
dá frutos , gera um sorriso , melhora algo,
salva uma vida .
Você agora crê no que mente
Revê a mentira
como verdade criada .
À sombra de onde você não se vê ,
você se reconhece , quase feliz .
Você não mais se engana .

Fim da espera

Desejo a você
que nada espere da esperança,
que reside na angústia do que desconhece.
Desejo a você
que antes de esperar,
conheça o desconhecido de si
, nada esperando de se encontrar,
antes contemplando a encruzilhada
de sua espera imóvel, movendo-a
para a ação da vontade que tateia o escuro
na busca por outro corpo cego de si,
abraçando-o, beijando a boca cega
que ilumina a cegueira tátil
de um amor desesperado.
Desejo a você
que deseje desesperar a esperança,
alimentando a ação que devora a fome
de sua espera.
Desejo que queira agir e amar
sobre o presente,
ternamente carregando acariciando o passado,
como noiva a ser deflorada
no presente futuro
aberto
ao toque afetivo
de sua ação.

Vivo

Não se matou .
Suicida errante,suicidou seu suicídio
por desprezo à vida.
Concomitante:
a morte seria da vida parte integrante.

Permaneceu vivo por rejeição ao nada,
que nada faria à sua vingança
contra o que de vivo em si crescia.

Aprendera a amar o que sofria
pelo menosprezo amesquinhado
por tudo que havia.

Não se matou.
Por menosprezo à morte , atropelo à vida ,
aprendera a amar o que vivia.

Socorro

Me socorra
a nem sempre me socorrer.
Me ajude a observar a edificação
do meu precipício
a perceber sentir tocar
a chaga da minha miséria
a fim de que eu socorra
a miséria de um outro
tocando sua ferida
que como eu não grita pela cura
mas pela compreensão
do que alimenta a fome que o devora.
Me ajude a nos doer juntos em comunhão
para que o altar do sentido da dor
se transforme no prazer
de uma estranha misericórdia.

Omissão

Ela age pela forma de sua ausência,
alterando os rumos do que não conduz,
sem deixar rastros de sua rota miserável.
Ela espelha a falta de seu reflexo,
como vampiro irrefletido,
sugando a doação
que se nega.
Por assepsia dos fatos,
por vezes é premiada
como virtude viciada
porque nunca erra
pela não tentativa.
Ela é a mãe desnaturada
que acaricia a sombra do filho
nunca nascido –
que chora sem lágrimas
a realização de toda promessa
de tudo mais que poderia ser
por menos que o nada
que paralisa toda intenção de afeto.
Um único, simples gesto a mataria,
para que tudo pudesse viver
e no entanto sua morte é tão viva.

Bula

Cura fast food para depressão:
dinheiro, sexo, desejo fabricado
por anestesia voluntária
de sua origem não verificada,
ação espasmódica contra o vento.

Efeito colateral não imediato, lânguido e pastoso:
mediocridade, vazio, contentamento esterilizado,
intenção mediada pelo vento.

Placebo para criação de uma doença invisível:
amor inventado, ideologia limitada,
indignação obstinada contra o vento.

Doença redentora indicada para cura irremediável:
amor inventado consciente de sua invenção necessária;
pensamento caótico que destrincha
devora e defeca sua incerteza
com fé nos dejetos sólidos da sombra
de uma tentativa de verdade;
epifania cega que se toca;
suicídio sempre iminente
vivo e pulsante
no olho do furacão
que rodopia a criação
da queda do fim inexistente.