União

Uma lírica mentira salva
da fresta de verdade
– que por se arrogar inteira
não enxerga o muro
que a contorna

Uma lírica mentira
que abraça
uma verdade incompleta
noivam
e criam a porta
no muro que inventam
e se casam
no desmoronamento
que atravessa
sua passagem.

Phoptoshop

Algum retoque que remende uma imagem
mal colocada ou intenção mal desejada
por falta mesma de um desejo assimilado.
Alguma distorção que repare uma vontade
mal fabricada por ausência de fábrica
ou corpo que invalide personalidade evacuada
por onde o vácuo da ação
não encontre validade
senão no vazio da emoção estratificada.
Alguma resposta que busque
a consequência de uma pergunta
jamais formulada
porque jamais encontrada.
Por que reparo se constrói
a sombra de um alguém
jamais revelado?
Por que construção se move um desejo
jamais tocado?
Nenhum retoque que remende o vazio
jamais encontrado
porque sólido
em sua construção
massificada?
Alguma construção
que encontre uma invenção
que troque o vazio virtual
por alguma realidade
personificada.

Epifania

Teu corpo vai desaparecendo aos poucos
com calma obstinada
que incita um suave desespero
Vou recompondo a imagem desordenada
de tua presença quase ausente
que já se perde na memória
do presente que escapa
e se fixa
como promessa de cicatriz
curada
como promessa de eternidade.
E amo cada vez mais
tocar tua fuga progressiva
como se abraçasse a distância
que chega ao lugar nenhum
onde nunca me encontro
com tua ausência
E deixo cada vez mais de te ver
como se te visse em uma escuridão
que clareasse o turvo da matéria
como se visse o toque
como se te tocasse
com o que a visão não alcança
com o que a palavra não diz
E te enxergo
como poema nunca acabado.

Memória criativa

Esquecer. Lembrar-se de esquecer
Esquecer voluntariamente a mágoa
que revive a cegueira tatuada do instante
a fim de que a cicatriz lembre o futuro
a ser construído

Esquecer como lembrança perene
da possibilidade de libertação do tempo

Esquecer os objetos, corpos, detalhes
que nos desviam do todo
a fim de que a mão
de uma lembrança maior
povoe de perdão
os erros que habitam a escultura
que sobreviverá ao engano

Esquecer. Lembrar-se de esquecer
para que se possa sempre renascer.

Droga

Alguma substância:
pó, matéria, corpo, ideal
aspirado, tocado, sonhado
que revele algum prazer
que crie uma realidade
paralela à realidade já fabricada
pelo irreal de nosso olhar

Alguma realidade artificial
que subverta o real
que já se cria:

Algum trabalho que nos arrede
do tempo arrastado pela circunstância
Algum ócio trabalhoso
que enobreça a atividade
que nos evade do tempo não consumado

Alguma transcendência:
substância amorfa
que nos evada do corpo
preso às circunstâncias
que criam a prisão de sua vontade

Alguma vontade
que nos liberte
da criação da vontade mesma.

Algo de morte
que não se morra em absoluto
Algo de vida
que repouse
no sonho de um despertar
para além do princípio pobre
do prazer
que não resiste ao sono

Algo de êxtase
no sacrifício que abraça
a oferta
sem retorno tátil
e que retorna eternamente
em algum canto que experimenta
este lugar nenhum
que nos cerca.

Bloco

Nenhum crime há de impedir o assassinato do ódio
que se aborta como honra amorosa ao odiado
Morte alguma há de abortar
a gestação de uma criança
-assassina ou santa-
em seu futuro.

Nenhum tempo
futuro passado ou presente
nos desterra do compromisso inadiável
e atemporal com a eternidade.
Nenhuma indiferença resiste ao toque
– carícia ou agressão –
que desnuda a pele do nada.
Nenhum desgosto obstrui o gosto
de lamber o paladar do sabor desconhecido.
Desilusão alguma ilude o sonho palpável
de algo sempre mais do que sonha a lógica
dos afetos impossíveis.
Cegueira alguma
cega a visão de dentro
que tudo enxerga
no que os olhos enganam.
Todo tropeço
desaba ao passo seguinte
da reerguida
de um corpo afeito
à sua queda mais elevada
que cicatriza e sorve seu abismo.
Morte alguma nos cura da vida
esta doença que nos mata e eleva
para aquém de toda proibição
para além de toda promessa.

Toque

Em todo toque, há um muro:
nenhum átomo, nenhum corpo
a outro se mistura.
Nada ninguém ultrapassa o que toca
nada ninguém compreende o que toca.
Sente-se no que toca
apenas o pressentido da sensibilidade.
Na carícia, o apelo à união
que funda a fusão das diferenças.
Na ausência do toque
ou no toque solitário
de mãos, corpos que se entregam
sem se sentir
a cegueira tátil
que os encobre.
Na agressão, a mágoa
que marca na pele a incompreensão
do que ultrapassa a dor
e funda um caráter
que toca o desejo de se ver além
do que enxerga a cicatriz.
Só se tocam e vão além do que tocam
o pensamento e o sentimento
quando se fundem
no corpo imaterial
de alguma tentativa de amor
que tente tocar
a transcendência do toque.

O cadáver insepulto

O cadáver insepulto anda pela sala
deixa seu rastro indelével pelos cantos, cômodos
passeia pela cidade,marca o país com seu cheiro.
Por se tornar cotidiano,não se faz perceber.
Antes, apodrece os ares com sua pretensa ausência
que se faz presente nas narinas pele corpos
de quem de o já haver entranhado
dele se reveste e se cobre
amaldiçoando o peso
de o carregar e não o ver
abaixo de sua sombra.

O cadáver já mora em nós
que não o matamos
por fingirmos não enxergar a morte diária
que nos absorve a morte diáfana
que encanta – e engana- nossa vida
e cobre de epifania
o desejo de nossa cegueira.

Não matamos o cadáver
por medo de matar a morte que sobrevive em nós
como um placebo que nos cura
da doença miraculosa
da fome de viver
para além de nossa morte
que nos habita provisória
até que ela desencarne de vez
– da nossa criação.

Caminho

O que eu quero vai me deixando.
Por onde passo, me ultrapasso
e me abandono um trecho.
No que em quem me deixo
resgato um rastro do que não tive
No que em quem me vive
-onde me acho-
desencontro o perdido
de onde me passo.
O que quero vai me levando
enquanto me abandono
lentamente
em descompasso
rumo à presença do que não tive
rumo à ausência do que se vive.
O que deixo vai me querendo
no abandono tátil
de onde me acho.

Impurezas do amor

Por amor, se cria, se concebe o zelo.
Por amor, se engana, se ama o ódio
Amor se turva em seu conceito e toma a forma do que ama
Amor se fecunda
em sua metamorfose permanente
a fim de sempre ressurgir de outra forma
fugindo ao instante de seu encontro
vivendo o instante de sua morte
a fim de sempre ressuscitar outro
pelo mesmo apelo de se amar sempre.
Ama-se, por sem opção, a vontade de amar,
na ausência, distância ou indiferença.
Ama-se o que anula o amor,
porque amor repara sua anulação e destrói
toda forma de não amor por não admitir contrário
mesmo em seu pretenso avesso, o ódio enganoso.
Amor não é puro
não se purifica
não traduz o que ama,
antes confunde sua desnatureza.
Amor se liquefaz no corpo do que ama,
se traça no desenho móvel de um gesto
por vezes avesso a seu intento
por vezes nunca efetuado
sempre visível
sempre transformado
na memória criativa do que ama.
Amor se derrama nas múltiplas versões
do que se diz ser amor
e não se concebe engano
ou vontade incondicional de amar.
Mas Amor se condiciona engano
que nos salva
de um acerto equivocado.
Amor se ama torto sem razão
desnudando a razão
de seu caminho frágil
rumo à queda.
Por amor se cai ao alto.