2015-01-07 13:10:00

       
  

Ventre

Por entre muros espio a fuga
que se move à espreita de abrigo
Movem-se os muros
acompanhando os passos
de seus fugitivos,confinados
até o outro lado da esfera
Remove-se o chão,
embalando a gravidade
que me mantém preso
ao equilíbrio
de me saber de pé
Ao alto, ri-se o céu
de seu forçoso limite
a olho nu que veste o engano
Fecho os olhos e enxergo o infinito
que não alcanço
e que me atravessa, incorpora
e me guarda em sua zelosa prisão.

2014-12-14 21:37:00

       
  

Jovem ancião

Envelheceste previamente
Antes de brotar, tua juventude já nasce antiga.
Ideais enrugados, sulcos e promessas cicatrizadas
colhidas no ventre  de seu perecimento
marcam a face de uma esperança idosa
que carrega seu esquife rumo a cova inexistente
Sobrevive só e à espreita o cadáver da eternidade
Condenado a vagar
rumo ao não encontrado
rumo ao alvorecer de uma velhice
que tornará jovem outra vez
o cansaço da tua busca
Viceja em tua já antiga juventude
a gargalhada  ancestral
de um sorriso desdentado
que se ri, melancólico
da perda
da infante e dolorosa ignorância
que é se conhecer
Se ri o sorriso desdentado
do velho jovem
que anseia pelas lembranças dos dentes
ainda não nascidos de uma criança
que mastigam o vácuo de sua inocência
Dentes não nascidos que não mastigam
a espera
que sorvem o infinito pastoso
da eternidade do instante sem tempo
Envelheceste jovem , previamente
sem no entanto perder tua fome de eterno
que é a única a amadurecer sem idade.

2014-12-08 13:47:00

       
  

Uma outra face

Dou-te uma outra face
em que ofereço
a reversa bofetada
que agride o afeto
com que acaricias teu mal
Toco tua indiferença
sangro as chagas do teu erro
crucifico teu abandono
ao pé da luz
que cobre tua ausência forjada
Enquanto cotidianamente
ressuscitas tua morte,
me ofereço à tua negada doação
conspurcando a sombra que te reveste
rasgando o ventre
da tua povoada solidão
Enquanto me ofereço
à tua rejeição obstinada,
recomponho o corpo
da generosidade desenganada
esculpindo em tua – nossa – carne lacerada
a obra em apelo
a uma comunhão desesperada.

2014-11-09 00:54:00

       
  

Perpétua

Daqui por diante
torna-te obrigado a ser livre
a criar a móvel prisão
em que vives tua liberdade
Daqui por sempre
espiarás pelas grades
outras liberdades
agrilhoadas por suas escolhas
escutarás
os envergados triunfos
de revoluções libertárias
na permuta de suas celas
Daqui, por fim,
serás condenado
à torturante busca
de uma felicidade aprisionada
ao desejo do teu corpo
que libertará o tédio
do teu sono
Daí, quando acordares,
e tornares cativa tua liberdade,
prendento-te à busca
do que queres amar, 
verás que aqui é sempre um limite
que se move com teus passos-
movidos por aquilo que não pisam
(mas sentem)
e que te eleva 
acima do teto do teu chão.

2014-10-27 03:12:00

       
  

Na treva

Na treva, desenhamos o esboço da luz
para que nossa criação nos ilumine
Na treva, tateamos a voz mais próxima
que ecoa o calor de um corpo
que aquecerá
a multidão de nossas solidões entrelaçadas
Abrimos os olhos
e enxergamos com nitidez
a escura salvação que nos cega
Fechamos os olhos novamente
a fim de nos libertar
da cegueira que nos conduz
e tocamos nossa nudez desamparada
invisível a olhos sempre vestidos
por uma sempre clara ilusão.

2014-09-18 02:26:00

       
  

Amor

Lembro-me de você
não como era,
de como o momento a pintava:
no esboço da memória inacabada
sempre presente
mesmo no instante ausente
no ideal que me faltava
Lembro-me do meu traço
que lhe acariciava
e criava
para que eu pudesse me esquecer
de um dia poder perder
sua imagem fabricada
Lembro-me sempre agora
de refazer seu desenho
em todos os amanhãs
para que o esquecimento
se esqueça de si
a todo momento
e não resista
à sua presença
eternamente recriada.

2014-09-08 02:48:00

       
  

Heroi moderno

Por covardia,
me escondo do medo
Tatuo na carne
a frágil armadura da força
onde exponho os ossos
de minhas convictas questões
e fraquezas
Por gula, crio os apetites
que sustentam a fome
que alimenta o vazio evacuado
das respostas
Ávaro na doação de minha virtudes,
por inveja me homenageio no outro,
este
que me oprime, exprime e redime
estilhaçando o meu, nosso reflexo
em pedaços irmanados
que constróem
uma possível imagem
de humanidade
Por iracunda preguiça,
me abandono ao leito desesperado
de uma furtiva e esperançosa espera
pela poesia concupiscente
que há de nascer
da virtuosa confissão
de meus mais castos vícios.

2014-08-28 16:34:00

       
  

Desabitação

Mora no abandono
uma ausência tátil
que jamais se despede
Habita no que me deixa
um desejo de desencontro
comigo, alguém algo
que por nunca inteiramente achado
jamais fora perdido de todo
a fim de que alguma encruzilhada
rompa a falta de um fim
Caminho no que me é distante
abraço o que me é ausente:
o que me falta me revela
Desabitado por perdas movediças
me abandono à construção etérea
do esboço presente
da minha ausência abandonada
( esta que nunca me deixa só).

2014-08-08 15:00:00

       
  

Milagre

De tempos em tempos, necessita-se um milagre
Algo a ser visto, mostrado, não por sobrenatural,
mas por algo que toque e desvele a natureza mesma,
por onde ela se esconde na miséria de sua invenção
De tempos em tempos, um milagre:
um gesto, humano e natural que seja,
que resgate, por um instante,
( que embale a eternidade)
um corpo que cai em irreal realidade
De tempos em tempos, um milagre que nos veja
e acaricie os olhos vedados
de nossa cega mortalidade
Em tempo, um milagre,
para que enfim se veja
que milagre é todo tempo
que esculpe uma verdade
Milagre que revele
nossa transcendente humanidade.

2014-07-26 23:31:00

       
  

Padeço do que desejo

Padeço do que desejo
O que quero me esmaga
e me embala
no inferno que me sustenta
Padeço do que desejo
O que quero me anula-
negando-se,criando o embrião
póstumo de sua falta
ofertando-se, corroendo seu valor
na volúpia da posse tátil
do que deixa de ser ao toque
Agarro-me , pois , à ausência fabricada,
acariciando, moldando seu corpo
à imagem e semelhança
do vazio impresso
que preenche o que não alcanço,
tateando o desenho febril
do avesso da vontade criada,
ressuscitando a criação
para que eu me reconheça
como a cria
de um desejo maior
que me transcenda
Padeço do que desejo
-e me curo em sacrifício
lançando-me ao abismo
da doação sem causa, 
ao abrigo do céu
que espelha minha queda.