2014-07-16 14:20:00

       
  

Receita de preguiça virtuosa

Carrego comigo laboriosa preguiça
viciosa virtude insciente que me salva
de outros vícios capitais
Por me enganar em nada fazer
tudo ganho em nada perder
Mas há que se trabalhar o engano
Preguiça desmazelada
a de descansar os cansaços
de tudo querer:
um homem perde-se
na acídia de se ausentar
de sua criação fabricada
Perde-se a fábrica mesma
de uma intuição verdadeira
no árduo trabalho
de sua invenção
No vácuo materializado
da laboriosa preguiça,
construo o fingimento
que me invento, quando,
mesmo inerte, sou inventado,
cientemente preguiçoso
do mamolengo da sorte que me move
e, preguiçosamente, me deixo encenar
por todos os falsos apetites
que me consomem
-enquanto os devoro
com minha insípida indiferença calculada.

2014-07-02 00:31:00

       
  

A um amigo

Por vaidade, te vingas
de quem não te adora
com a falsa indiferença
que tua íntima fome alimenta
e te devora
Por soberba, te vendes
a quem te ignora
doando-te ao preço
que negocia teu apreço
ao que te deplora
Te escalas ao avesso, pelo precipício,
caindo de ti, desde o início:
te apoias na pele do que não vês
rasgando a carne do que crês
E crês sempre no que te trai
cavando o remorso que te esvai
(receba, amigo, esta canção
como reversa oferta de perdão).

2014-06-14 01:06:00

       
  

Sorri na carne a cicatriz

Sorri na carne a cicatriz
lânguida, horizontal, irregular
a zombar da sólida e frágil composição
do corpo que a abriga
Sorri, abocanhando a suave textura
da pele que implode
com seu sorriso sem dentes
Sorri da carne a cicatriz
sorri de sua morada breve
eternizada no momento da mágoa
que a habita
Mesmo removida por plástica, tempo, afeto,
segue sorridente a cicatriz
por se saber póstuma ao seu fim
 por se saber parte atemporal 
da anatomia do tempo
ungida já no nascimento do corpo
corpo que não se fecha à sua mácula e chaga
corpo que nunca se fecha à ferida aberta
de sua ressurreição nunca cicatrizada,

2014-05-28 11:51:00

       
  

O que não vejo

O que não vejo me observa,
me despe:
um rosto perdido,
presente na memória do impossível
um gesto desencontrado
ou esgotado na lembrança de sua negativa
algo ou alguém que se define- e me exprime-
por sua falsa ausência visível e tátil
de uma espera desesperada
O que vejo está aquém do que espero
O que enxergo, aquém do que alcanço
O que não vejo me enxerga
me toca me guia
e cobre de luzes
minha cegueira em espera.

2014-04-23 21:53:00

       
  

Falta

Quem sentirá tua falta quando faltares?
Importa a ti a tua falta
quando aqui não mais te achares?
Que falta faz a falta a si 
quando a falta a ela mesma se torna presente?
Tu, que de ti nunca te ausentas
que de ti sempre te escondes
sabes bem
que tudo sobra
porque sempre falta algo que se ausenta,
desde antes que te abandonaram à vida,
quando nasceste
E até sempre
quando tu também
te encontrares na memória do que falta.

2014-04-10 12:45:00

       
  

Meu desejo

Meu desejo é minha procura
por onde não me acho
Se me encontro
me perco como oferta a objeto
Se sujeito, me consumo
à compra de uma liquidação.
Responsável por sua invenção,
deixa o desejo
de ser desejável
Ciente de si,irresponsável em si,
perde o desejo a resposta
por sua questão
(Se fora de mim, não me limito,
por dentro não me liberto)
Meu desejo é a procura
de onde e por que não me acho.

2014-03-10 15:56:00

       
  

Um vencido quando vence

Um vencido quando vence
desgosta da vitória
por não mais provar o gosto
do fruto do triunfo
que adoçava sua falta
Um vencido quando vence
novamente se derrota
por provar da memória
do sabor vindouro
da utopia da vitória
esta que agora apodrece
na colheita de sua insipidez.

2014-02-21 02:28:00

       
  

Comunicação

Você não sabe do pouco que sabe
e do menos que vale
pouco mais saber
do pouco que há para quase crer

Você não crê que o que sinto vale
mais que a crença
indiferente à indiferença
(porque esta custeia seu talhe)

Mal sei eu do que valho
por isto me atalho
em você
onde inteiro me embaralho e talho
onde tudo me crio e desvio
do nada que sei que você me sabe
Você não sabe o que sente
e afinal não mente
pois se reconhece
no que desconhece
(melhor talvez que não tente).

2014-02-19 16:36:00

       
  

O que se busca

O que se busca
é algo a se buscar
algo que desvie
do caminho para parte alguma
Do que se foge
é tudo onde repousa
toda a paz que pesa
sobre o horizonte estéril
o que se faz
é a invenção desmedida da rota
ainda que o que se ache
seja a chegada de outra volta
O que se busca
é a bússola que norteia o rumo da queda
onde, por perdido,
quem se busca é algo a ser buscado.

2014-01-09 10:24:00

       
  

Distração

Amputando-me, me distraio
Um membro de cada vez:
um olho, uns dedos, um braço, alguma certeza,
alguém,um sonho póstumo, outro e qualquer desejo
mal colocado na anatomia das perdas
Perco até a cada dia
o que não me foi ganho diariamente;
me desfaço mesmo das próteses:
um novo nariz de cera 
ou nova intenção não encaixada
à resposta de um corpo externo
Vou aos poucos cortando os pedaços
e sombras do que não me fiz
até me distribuir devidamente fatiado
ao paladar insípido do açougue das perdas
onde me consumo e me devoro
como tumor maligno
que ganha vida e se espalha
destruindo o corpo em que habita.