Adrilles Jorge

Viajar .
Descobrir um lugar
fora e dentro de si mesmo .
Ver no deserto
o imenso vazio ou a plenitude a ser preenchida e descoberta na sede do que não se sabe
onde se nunca sacia .
Ver na torre a tentativa de tocar o céu
intangível como ilusão da ambição
que te estimula a ir ao alto
mais alto mesmo no toque
de um irmão cujos olhos
são tua altura e queda .
Viajar .
Pra um quarto sujo de hotel
onde se encontra no desencontro
de um amor que se colhe
na bagunça dos lençóis
como se colhe uma flor
na lama do desejo .
Viajar .
Para dentro da quarto desamparado
da tua voz inaudível
Para dentro das vozes
de quem te ama
de quem te odeia
a fim de escutar
a escultura precária
que você faz
com o que fazem de você .
Viajar para uma ruína
que espelha teus pedaços
espalhados pela história
onde você colhe os teus destroços
para compor a obra de arte viva
da memória dos teus olhos
que nunca te enxergam completamente
mas sentem e atravessam
tua incompreensão .

Acompanhavam sua solidão
inúmeros rostos
inúmeras vozes
inúmeras palmas distantes
que acariciavam seu
ego despedaçado em inúmeros reflexos
partidos
de possibilidades de mãos corpos
que vestiam sua sombra intocável :
Se protegia por sua sombra intocável
onde tateava e acariciava
a sua própria luz
que não enxergava .
Desfilava na missa de domingo
a soma de todos os seus vícios virtuosos
como um destaque de escola de samba
que dança sobre seus desencontros
vestindo a fantasia de uma permanente ressurreição .
( morria sempre em cada relação
por saber do prazer onde ressuscitava ).
Mastigava bocas como hóstias sagradas
Tentando engolir
a fome do pão e o vinho
de sua redenção
que nunca a encontrava .
Grávida de seus sonhos
fecundava a si mesma
na passarela da igreja
onde recebia o Espírito Santo
da religião que para si criava .

Sinto tua falta – mesmo na tua presença .
Sinto falta de sentir o ideal que fabrico
no que lhe falta . No que me falta .
Sinto falta de mim que me completo
na tua ausência onde me sinto no que me dói
:tua falta .
Sinto falta de você no futuro projetado
nas palavras não ditas nos gestos equivocados que nunca faltam
onde transborda tua presença fatiada
no que faltou dizer faltou fazer
faltou acontecer .
Sinto minha falta no espaço ocupado por uma cadeira vazia
a esperar por um outro
num Story de rede social .
Sinto nossa falta como um Story
passado ao léu : um story que não
se consumou em foto
guardada num baú de família .
Sinto falta de histórias passadas
nunca por nós vividas
onde ficava a imagem eternizada
de um retrato cinza
mesmo que de uma família
com o sorriso amarelo
ao menos do esboço de uma tentativa .
Sinto falta do que jamais nos acontecerá
que ficará para sempre encontrado
em nossa imagem jamais registrada .

A desinformação corre solta
à frente de todos que veem a verdade :
torturados banidos presos e arruinados
desfilam diante dos cegos voluntários .
Os desinformantes acusam de mentirosos
os que buscam a verdade.
O juiz carrasco está nu.
Será preso quem apontar
A toga ausente do juiz carrasco .
A verdade se torna um ataque à democracia dos que zelam pela segurança da nação.
A desinformação anda de braços dados
com os que querem assegurar o pão .
A verdade não paga o pão da omissão:
basta nada dizer fingir que não se vê
os presos os mortos os torturados
os arruinados
Basta nada dizer da injustiça
que nada lhes será tirado.
O silêncio é testemunha
dos que abrigam a injustiça
que colhe o emprego e o sustento
do que se fingem não ver a morte
em seu redor .
Os empregados do regime
louvam os opressores
berrando seu silêncio
que entra pelos ouvidos
dos destruídos pelo regime.
Os empregados do regime
nem precisam trabalhar :
seu trabalho é nada fazer
pelos que gritam socorro
Seu trabalho é nada dizer
pelos que gritam seu desespero
Seu trabalho é apaziguar
o carrasco e a vítima
no momento do crime
simplesmente
olhando para outro lado
e pulando o carnaval .

Um cão atado a um
Mendigo :
Partilha sua comida , sua fome
seu abandono ignorado pelo cão .
O cão ignora que o homem que ama
nada tem , dinheiro , família , amante , casa , nada .
A casa e a renda do cão
são o toque das mãos do mendigo.
Um ser civilizado constrói seu amor :
Tem regras pra amar e ser amado:
O cão não julga e não constrói seu amor
ao mendigo :
Ama sua mera vontade de amar:
Nada pede ao mendigo que não seja um resto de comida um resto de olhar de carinho:
repete todo dia o ritual de esmolas
de afeto que para o cão são tudo .
ama sua vontade de amar
a quem decidiu amar.
Um cão atado a um mendigo
como a sombra a um corpo
onde a luz é seu amor incondicional
ao homem que ama .

Filmava a própria solidão
como apoteose da vitória
da própria companhia .
Filmava
O Vinho que saboreava
Os lugares onde andava
A comida que saboreava
As obras que olhava
que eram os sentidos que partilhava
com a plateia que idealizava.
Filmava seu orgasmo íntimo
com seu próprio corpo
Filmava a impotência irrealizada
do próprio desgosto
na projeção espelhada
do seu próprio rosto .
Os supostos olhos que olhava de fora
das imagens que fabricava
eram os olhos dos aplausos dos afetos
que idealizava .
A correspondência a reciprocidade perfeita
na festa de um só
que se reflete
num espelho de milhões de solidões partidas
e compartilhadas .

Onde mora teu erro mais justo ?
Errou melhor quando amou a pessoa errada
de uma maneira certa
atravessando teu erro
atravessando a pessoa errada
com teu gesto de carinho
a fim de tornar a pessoa errada mais certa
pela ação do amor que lhe teve
que lapidou
quem você amou aos moldes do ideal
que lhe pintou .
Onde mora tua justiça mais cega ?
Aquela que condenou muito justamente
uma pequena parte de quem lhe fez mal
e ignorou toda a construção do mal
que fizeram a quem mal lhe fez
que ignorou a ignorância cega
dos olhos que deixaram de te ver
a ignorância cega da mão
que lhe apunhalou .
Deixaste de acariciar a mão
que te apunhalou
e este foi teu erro sem perdão
porque perdão
seria a mais saborosa vingança
que te igualaria ao Deus que criaste
e te criou
que edificaria teu mais sublime acerto
derramando afeto
em quem amassou o pão
que ofereceste .
Ainda é tempo :
Com a vaidade da tua misericórdia
come o pão amassado
que ofereceste
Acaricia a bofetada que te ofertaram
e saciará a fome
do que está além da justiça.
Assim tua ação mesma
será o céu onde viverá
para sempre a tua redenção .

Misericórdia

Agradeça o infame escárnio
que escarram
sobre o molde
do teu caráter que se lapida melhor
pela injustiça sofrida
que arranca da tua pedra bruta
tua melhor versão
que se esconde no teu
prazer sem forma .
Agradeça a rejeição :
a ausência que te abraça sem causa
e causa o melhor amor
com que cobres o vazio de quem não te olha
enxergando os olhos
dos que não são vistos .
Agradeça o abandono dos que te deixam
-por morte em vida ou fora dela –
porque aprendes a viver melhor
no abraço dos que são deixados .
Agradeça a falta de sentido da dor
porque aprendes melhor a sentir
e curar a dor alheia
onde se unem na sentida dor comum
os homens no abraço
que lapida a estátua

Não existe acaso.
Tampouco existe destino .
A vida na terra teve uma chance
em um trilhão
no universo que observa
-sem vida -ser observado
pelo tempo escasso
de uma pessoa que observa
em seu mínimo tempo
a vida
que se cria e se consome
ao infinito .
Um folha que cai no teu ombro
Alguém que esbarra no teu ombro
forjam a história
dos teus momentos .
Um breve momento jamais desacontece:
Permanece tatuado no infinito
de uma vida .
Cabe a você segurar a folha
ou alguém
Cabe a você segurar o momento
Tocar segurar
aprender a amar e tocar-
infinitamente –
na tua vida breve –
uma folha caída uma pessoa caída
no seu tempo
e produzir a tua história particular do universo.

Há algo de paz no trágico
onde se deita no conforto
da paz da descrença
como um sono grave onde
se espera um despertar
da ausência da morte cotidiana .
Há algo de angústia
No fiapo da esperança do perdedor
que aleita o eterno cansaço
de esperar
que aleita o eterno cansaço
de não se cansar de sorrir
diante da espera do fato adiado:
cada gesto tentativa ação meticulosa
que se perdem num segundo de distração
que destrói toda tentativa de comunicação :
tudo somado é o saldo negativo do desperdício das horas em que se constrói
o sonho acordado .
mas aquele único momento
não de felicidade
não de realização
aquele único momento
de crença na promessa
da ressureição do olhar sobre a vida
faz tudo novamente valer a pena :
E a pena é a trágica e desesperada esperança
de que tudo o que se quer amar
jamais voltará a morrer .