2013-12-06 13:35:00

       
  

Vir a ser

Quando vir a ser quem eu quero ser,
quererei então ainda ser o que quero ser hoje?
A culpa do que não me fiz ontem
se redime por ser eu hoje
o que nunca imaginei ser antes?
Serei eu amanhã
a vontade morta, póstuma
do que quis ser hoje?
Prescreve um crime pelo tempo do ato
Mas onde jaz a culpa do tempo de sua intenção?
Não prescreve o crime
pelo remorso do criminoso
Prescreveria a intenção
de querer ser eu
algoz do que sou agora
quando logo mais
nada mais quererei
do que deixar de querer ser
tudo além do que jamais fui?
Quando, pois, deixar de querer ser
tudo o que quero e quis ser
serei algo mais do que quero
e contrariado,
quererei algo menos do que sou
Onde e quando digo que sou, fui, serei
deixo de ser
Sou apenas
quando de mim me escondo
e a mim me traio,
não me achando.

2013-11-21 10:07:00

       
  

Partida

Partiste:
esquivamente, como quem
nunca chegou de alguma ausência
sempre presente, iminente
Vieste como quem alarga os becos
expandindo móveis prisões
a horizontes de intenções
nunca alcançados
e agora ausente,
rearranjas a decoração
dos espaços vazios
de onde se caminha uma sempre ida
a certo lugar nenhum
Partiste, assim como vieste,
de alguma desencontrada parte minha
que agora para sempre amputada
teima em se reencontrar
partindo do desejo partido
da tua volta.

2013-10-30 18:13:00

       
  

Vida

Vida:trapaça que se trapaceia
em sua intenção intuída de verdade
verdade que se escamoteia
na breve mentira de sua idade
Tempo de vida:hiato entre milênios de nada
antes e por vir, exceção que nos distrai da morte
Hiato falho:nada que não se sustenta
ante o peso de sua exceção
Apelo à vida:como vive quem não se pergunta
o que não se responde? Resposta na procura
por tudo que se esconde onde tudo toca sua fuga
Vida:fuga forçada e inviável de seu objeto
Não se pergunta um cão porque vive,
antes responde à fidelidade instintiva ao seu dia
Humana vida instintiva: fidelidade canina
à sobrevivência, à falta de outra resposta produtiva
Reprodução desassistida por sua indefinição
Vivida sem fim a ação exclamativa
de sua interrogação
Vida: porque algo que não se exprime
por tudo que não se redime
Vida linguagem não fluída
corpo que abraça
a sujeição do sujeito
à sua obra indefinida.

2013-10-10 13:23:00

       
  

Visível cegueira

Por onde vejo
desprezo tudo quanto desejo:
tátil é o prazer cego
com que os dedos tocam
e desenham o corpo fabricado
Por onde cego
subsiste o toque
no entulho cotidiano
de eternidade esgotada:
suicida é cada mordida
no que (me) devoro
de olhos abertos;
insípido é o gesto desesperado
de me tocar, abraçando outro corpo
desnudado de sua, minha aparência,
porque aparente objeto
é cada corpo
que se estilhaça
em cegos e invisíveis sujeitos.

2013-09-23 12:33:00

       
  

Conselho

Você, que se aproxima
Não confie em mim
Não confie também em sua desconfiança
que se reconhece em seu reflexo invertido
Não se fie sequer em afastar-se
da inescapável aproximação de outro próximo
equidistante entre uma boa intenção desabável
e uma desverdade assegurada
na confiança de uma criação
que acompanha sempre sua solidão
Você, que se afasta de mim
não confie em si
Aproxime-se indevidamente
da também inescapável entrega 
ao que e quem você não sabe
nem jamais saberá
tateando seu tato sem objeto
criando o corpo imaginário que toca
com seu desejo, intenção e desconfiança
Você, que por aproximação
tenta ausentar-se de si
confie na fuga em direção ao próximo
mesmo que a distância esteja sempre perto
presente e desconfiada.

2013-08-21 11:59:00

       
  

Minto

Minto.
Minto por amor à verdade
por não me crer e não saber
como cheira a realidade
Minto por não me ver
Por sombra de caridade,
invento por me querer
doação à falsidade
Por sobrevivência minto
pela ausência sinto
não minto onde me dói
mas crio o que me corrói
Minto mesmo por engano,
forjo a mentira ausente:
até na mentira incompetente
minto por ser humano
verdadeiramente.

2013-08-14 05:45:00

       
  

Ascese

Mede-se a queda
pela inversa escalada
do abismo
Emprenha-se o tempo
na reversa medida
de seu esgotamento
Esgota-se o fim
no tempo
de seu princípio,
onde mais se queda
o abismo,
caído em seu fundo
de céu infinito.

2013-06-23 15:06:00

       
  

Revolta

Revolta-se em mim
o que incita o que não sei
e que me oprime
por onde não me sabem
Revolve-se em mim
minha ignorância
maculada pelo toque do instinto
de saber-se consciente
Não vejo por onde me esmagam
mas minha carne trespassada clama
pela compreensão do que a dilacera
e grita
pela ferida exposta
o berro desesperado pela espera
de um sentido
que justifique ao menos
a falta que me fere
que justifique ao menos
a dor ausente
do que ou quem escalpela minha voz
distante e esmaecida
por ecos de silêncio forçado
Pulsa e repulsa em mim
o grunhido expectorado pelos cantos
de meu cadáver sobrevivo
que ressuscita e dança ao som dissonante
da revolta viva
contra minha morte cotidiana.

2013-05-29 12:45:00

       
  

O sangue corre

O sangue corre
nas veias do paciente terminal
em direção ao que não espera
em ritmo ordenado
O sangue escorre
nas mãos do assassino
coagula
no medo da doação
deságua, lívido
na curva da história
e não mancha
os dedos de quem a escreve
O sangue estanca
no cadáver da vítima
que se vinga, imóvel
da circulação sanguínea
desnorteada do tempo
segue
a arritmia de um coração impreciso
(metáfora viva carcomida pela
anêmica pulsação do uso)
De sangue roubado
se alimentam vampiros imaginados
e reais imaginários desumanizados
No sangue
e em outros líquidos contaminados
sobrevivem
vírus parasitários
e outros sobrevivos condenados
De sangue
se enche uma ereção
eivada de excitação
ou da fome de desejo
fabricada
por uma química ação
Sem estímulos
-reais ou forjados-
pelos vasos capilares
dilatados da sede
não corre o sangue
Assim o sangue jorra
nas veias abertas
do vivo suicida
e para, eternizado
no fluxo contínuo de
quem sobrevive à intenção.

2013-05-20 13:51:00

       
  

Valores

 

Quando muito, algo
quando nada, algo mais:
algo que se perde e ganha
no caminho da entrega
que se furta ao seu destino
Algo que se extravia
na troca da intenção e do acaso:
um corpo, um móvel, uma fala, um afeto
Quando tanto, a remuneração
do prejuízo calculado
pelo produto que se escamoteia
no desejo do comprador:
mais valia tácita
de um vazio que se esconde
no fetiche de seu preenchimento
Vazio que se vende
no fundo de sua garantia
garantia que se aplica
no fundo de sua incerteza
Onde o vazio?
Onde o nada,
esta moeda abstrata
que se negocia
pelo preço de tudo?
Quando tudo,
a compra de bens imediatos
a posse desmedida do que se toca
e não se vê:
uma palavra, opinião, ética,
uma fome:
capital que adorna o desconforto
de se saber escolha ativa e passiva
em mercado sem valores fixos.