2013-05-16 06:04:00

       
  

Perdão

 

Me perdoe, por gentil misericórdia,
por algo que não sei se fiz
ou por nada fazer
que não remendasse o não feito
Me perdoe pela misericórdia mesma
esta concórdia que compartilha
nossa mútua miséria
Miséria de nos sabermos
passíveis de perdão
e de secreto gozo
pelo engano reiterado
da mágoa que não se redime
e se imprime
no cálculo compassivo
de nossa doação
Me perdoe por não saber
por onde nos perdoarmos
ainda que este erro
tangível e incalculável
nos una e nos abençoe
em nossa soberba incompreensão.

 

2013-04-07 16:41:00

       
  

O ódio me sustenta

O ódio me sustenta
alicerça
o contrapeso de querer o que me esmaga
e concebe e não me sabe
O ódio precisa a exata necessidade
do que não preciso
e me dilapida, consumindo meu vazio
Como um calmo rancor
que embala a fome do toque
como o afeto da mãe que aleita o filho morto,
o ódio presta subversiva homenagem  ao que amo.

2013-03-05 17:04:00

       
  

Anatomia da espera

 

Por se saber sempre esperada,
a esperança atropela
escalpela
o ato de seu curso
e em seu discurso
esmaga o presente
qual promessa dissidente
A esperança não espera
e se desata em ação
de furtiva espera
por alguma intenção
de atemporal quimera
Espera-se até pelo que passou
por tudo quanto não ficou
tatuado em projeção
da ação contrafeita que restou
do resto sem sobra
que a esperança alcança
sem demora
Espera-se para agora
a morte da esperança
e que nasça, à mesma hora
a gestação de uma criança.

 

2012-12-17 14:56:00

       
  

Fundo sem superfície

A superficie desaba ao seu fundo
fundo este agora superfície
que reveste e sustenta
sua futura queda
A pluma desaba
ao peso de sua leveza
ou esboroa ao ar
que embala o voo de sua queda
Corpos se atraem
e se quedam e desabam
ao peso do voo livre
da colisão infundada
de suas superfícies.

2012-11-21 00:02:00

       
  

Falta algo

 

Sempre falta algo
Algo além do que limita o horizonte
algo mais ou menos
do que o caminho nos delimita
algo que atravessa o olho
que cruza a encruzilhada
para algo que se interpôe no meio
do desvio ou da queda
que me ergue do erro
Falta quase o que sempre resta
no cálculo preciso que pede vênia
à imprecisão da limitação dos sentidos
Falta pouco à perfeição dos números
que concebem uma estrutura
cuja matemática se esgota
na conta que não se fecha
no infinito que define
o que sou e o que me falta
Falta algo infimamente semi-imperceptível
na harmonia quase irretocável do traje
cujo corte toca uma fibra em desalinho
com a pele que permeia a curva
que não se adapta ao talhe do corpo
que se rasga e se costura
no afã de tocar algum toque que escapa
Falta tudo ou quase isto
ao desejo de algo
por algo não ser tudo
que não se esgota no esboço da vontade
Falta algo à sobra
do que nem sei mais querer
(falta à maçã a mordida
no desenho do seu corpo?)
Falta algo à tua ausência
que não se verifica
à falta
que faz a minha presença incompleta
que não necessariamente preciso
(Falta algo à realidade
que não nos informa
sobre a natureza
de sua transcendência
ou faltaria algo em nós
que não nos descobre em essência?)
Nada falta porém
à falta mesma
que esta se esgota e se completa
na impostura
de sua plenitude desbastada

2012-10-22 10:03:00

       
  

Disfarces do óbvio

 

Engana-se o olho com o que vê
Altera-se o que é visto
pelo olhar que observa seu engano
Por se saber aparência
aos olhos que o concebem,
o engano desfaz-se
Por se saber aparência-
engano enganado-
também o que olha,
ao engano concilia-se
E o engano compraz-se,
certo de sua evidência.

 

2012-09-19 15:20:00

       
  

Pedido

 

Por gentileza, algo mais que a vida,
este apego a algo à falta de algo além
Por delicaceza, algo acima da existência
esta teima contínua
em continuar rumo a nada,
por nada se colocar
ao alcance de algum desvio redentor
Por obrigação mesma,
algo de menos que seja
que requeira algo mais que extravie
o rumo de um sentido ausente
Por misericórdia, algo aquém da morte
que me acompanha a cada tropeço
obstruindo o caminho de um fim
Por razão,
algo de cegueira passional
que não me desvele, antes me ultrapasse
e revele uma certa epifania que não se veja.

 

2012-08-27 11:09:00

       
  

Multiverso

 

E daí, pergunto a ninguém,
se o universo é indiferente ao destino humano?
Por vingança involuntária, quem concebe
galáxias, estrelas, planetas, buracos negros e vazios,
sentimentos e sensações que povoam visões,
lugares e criações
é minha consciência
Se morro, durmo
ou mesmo tiro os olhos da lua
(ou minha boca da sua)
para cortar as unhas,
deixa de existir o universo
(e tudo mais ou algo menos)
como espaço tátil e intocável
como conceito fácil e inalcançável
que se transforma
em desolado parque de diversões
que o defina em sua infinitude
sem público
E daí, pergunto indiferente à indiferença,
se à margem de mim mesmo
me questiona -além do que não vejo,
além do que não sei-
aquilo que me sabe e toca?

 

2012-07-23 10:07:00

       
  

Aqui

Para onde, por onde mira o desejo?

Que rosto, todo, detalhe,
que esboço, ato ou adejo,
que fim finaliza seu talhe?
Por que fim se esboça o princípio
que formula a intenção?
por que todo se corta o início
que esboça uma ação?
Por onde responde
a queda do anseio
que encerra ao meio
o que de si e em si se esconde?
Por onde me venço e formulo meu pleito?
A que qualquer coisa estou sujeito?
De que tudo nada é feito?

 

 

 

2012-06-26 03:50:00

       
  

Teoria da interdependência

Independe de nossa liberdade
nossa utopia de independência:
depende do olhar alheio a afirmação movediça
da criação de uma personalidade;
depende de nossa invenção a abstração
de nosso desejo por algo ou alguém;
depende de algo ou alguém
a aceitação da ação de nosso desejo.
 
Depende de nossa escolha a liberdade
viável a que nos conformam
teses dependentes de seus criadores;
depende de suas criaturas a conformação
do que venha se chamar liberdade.
 
Depende de um patrão, estado, organismo
a liberdade econômica de nosso sustento. 
A sustentação de um estado, patrão, engrenagem
é dependente do consumo de seus empregados,
consumidores de produtos-roupas,comida, livros, ideias-
que alimentam apetites, fetiches, vaidades que os consomem.
 
Para criação de nossos produtos- ideais, sapatos, poemas-
dependemos da produção anterior
para desenvolvimento do futuro
à  base do passado.
 
Dependemos do acaso para além de nossos esforços
Que nos oferece e retira condições e circunstâncias.
 
Dependemos sobretudo
do empréstimo
de uma razão de viver
que damos de graça à vida-
que depende de nós
enquanto conceito dependente
de nossa criação, observação e sobrevivência.