2011-01-08 03:37:00

       
  

Entregue

Aqui me tens como queres:
ressonância da voz de tuas contraditas,
sombra do avesso da troca de tua pele
cuja tessitura ressuscita e regurgita
a proteção anfíbia das velhas dobras
de teu corpo exausto de atávicas certezas

Aqui me tens como quimera:
desejo postumamente postergado
do que quisera vir a ser
na projeção do olhar de outrem
e em já não sendo ou vendo,
por preguiça de estar a ser
à margem de outro
e por não ver
além e aquém
deste estrabismo em comum,
aqui me vês como cegueira

Aqui já não me sentes
porque aqui já se perde
em ubíqua tormenta deste agora perene
que dispõe dos lugares
que nos enfia
para fora
da possibilidade de nós mesmos.

Aqui me lembras como serias
na amplidão do espaço infenso
ao catre do ideário
do corpo de seus espelhos
,entregue às margens
que esquadrinham o deleite do teu sono
e descortinam os arredores
da descoberta tátil
do teu reflexo

Aqui me abandonas descoberto, nu,
líquido em múltiplas imagens
que evaporam à truculência da luz.

2010-11-14 04:45:00

       
  

Traição

Dá-se fácil a traição, suavemente, líquida
como que encoberta por uma espera tácita
ansiada por angústia calculada,estirando as curvas
na desorientação das tangentes

Complacente, salutar
como um unguento da imobilidade:
punhalada redefinidora
da educação dos escrúpulos
que suga o esboço da certeza
e sangra a gênese da intenção

Dá-se amarga a traição
como a temperar
o sabor doce do desejo único
como a fustigar o tédio
dos paladares afeitos à tradição

Liberal em seu intento
irrompe em revolução silenciosa
pela infâmia aos blocos
da convicção inviolável
pela corrosão à luz
que cega a sombra alentadora

Dá-se fundamental a traição
que fundamenta a violação imprescindível
das margens do corpo
dos limites do sorriso
das limitações da lógica

Dá-se vital trair-se e ao próximo
a fim de pelo avesso
recriar-se a humildade dos propósitos
como condição orgânica ao perdão,
a fim de pelo engano
fundar-se o acerto
pelas costas do cadáver apunhalado.

2010-08-21 19:13:00

       
  

Objeto indirecionado

A quem se dá a chance de algo ser
quando algo se perde por indefinido
quando ser não se verbaliza por definitivo
perdido por algo que não se cristaliza
onde mais se materializa a quebra

A quem se permite o acaso de ver
onde ver é verbo intransitivo
que transita para dentro da fome
que açula o paladar dos olhos
e roça os olhos do cego

A quem se ganha o privilégio do fim
em que morte é recomeço
da cega epifania do verbo indefinido
que revela algo mais do mesmo
quando chance é algo perdido

A quem por todos se percebe
algo de verbo
algo de cego
algo do mesmo
rompendo o fim
por indefinido
será algo de novo.

2010-07-29 03:48:00

       
  

Koussa

Não te vejo
mas te sinto onde te invento
bricolada na intenção do desejo

Não te sei
e sorvo o naufrágio do descaminho
de teu norte desorientado
onde me abandono e me perco
à margem do esboço do teu corpo
criado ressucitado
à imagem e assimetria
de meu fim e recomeço
onde
por nada mais a perder
busco o ganho da perda
do que não te foi encontrado

no entanto e além
não te perco
porque te toco na ausência escalpelada
de tua pele
que acalenta e reveste
meu corpo incompleto.

2010-07-15 00:37:00

       
  

Posses

Tudo que ousei não ter
sempre me pertenceu,
mais ainda o que me perdeu:

por direito e por avesso
foi meu
o grito preso
que não aconteceu
ecoado na memória do esgotamento
escoado no som oco do lamento
incrustado no corpo
pertencido e perdido
na lembrança
do que não ou quase fui

Mas ainda sou- incompletamente-
eu-
a mim não pertencido
por mim vencido
pelo que me oprime e me imprime:
ganho de posse do que nunca sendo
enche o fosso do tempo negado
sempre e novamente evacuado
furtivamente se oferecendo

Tudo que ousei não ser
sempre me valeu
mais ainda o que me venceu:
encontrado no perdido
hei ainda de possuir
minha reinvenção 
no desacontecido –
minha ruína a se construir.

2010-06-13 01:48:00

       
  

Da inviabilidade da impossibilidade

Nascemos do improvável:
remota chance de vida em ínfimo planeta
aquecido por estrela de quinta
na periferia
de uma entre bilhões de galáxias

Nascemos do impossível:
onde fecunda o inviável,
se estabiliza a verdade criada
-e outros afetos mais íntimos

Nasce da improvável impossibilidade
este desejo obsedante de ultrapassagem
do inviável
de atravessar à outra margem
do intransponível
quando ofertos ao contorno de nossa encruzilhada
encontramos tempo carne e nada

Parimos então-sem condições-
condicionados pela urgência
os mesmos carne tempo e nada
e destes filhos nos tornamos embriões
casulos de razões esboroadas
que justificarão
a questionável impossibilidade do ser

Nascidos e nascedouros de remotíssima chance
seguimos sendo, urdindo milimetricamente
a ausência de nossa impossibilidade
enquanto impossivelmente
vive 
cada gesto
cerceado pela impossibilidade
cada impossibilidade
cravada pelos dentes não nascidos
de um feto inadequado.

2010-05-09 19:13:00

       
  

Das impossibilidades da indiferença

Móveis e utensílios contemplam sem vida
usos e desusos de moventes que os tocam
e indiferentes
sem saber à indiferença
-que esta é viva
nascida dos que diferem-
na pele queimada
pela ausência do toque

Que indiferença é esta
que não se sabe a conceito
e não se cheira a verdade
não se percebe

Viventes desusados contemplam
sem nada
sem indiferença
a ausência incalculada do que nos move

Móveis e utensílios
de pele osso carne
e algo mais que nos difere e une
em violento bocejo embalsamado
que nos eleva à condição de coisa tangível
que se sabe a toque
e, no entanto, não se aprende tátil.

2010-04-01 03:31:00

       
  

Claustro móvel

Como quando o corpo ata ou sublima
o sentimento e o subjuga à sensação,
assim nos esvaímos na carne,
esta que nos move e nos delimita
a libertação

Como quando o corpo nos desenha
em esquálido rascunho o que não nos vemos
e submissos ao traço
nos quedamos atados ao esboço
do que transparece
sentidos na também esboçada margem alheia
por sem escolha
nos estarmos caricatura

Como quando palavra que não nos define
como quando além que não nos redime

onde somos?

2010-03-24 08:24:00

       
  

Vingança

Lânguida, pastosa, a fome se esparrama
sobre os termos da vontade
qual calda que se dilui e se entranha
em sal que quebra todo sabor

Só a indigestão dos afetos contraditos
saberá responder ao paladar desta autofagia
que destempera a virtude

É preciso, pois, ponderar os dentes,
equalizar os condimentos da ânsia
e aproveitar as sobras
do que virá a ser evacuado

que o banquete dos sentidos
está por começar a todo momento

Posta a mesa,um corpo ainda vivo
sempre será servido:o teu,o meu, o nosso
para livre gozo dos apetites humanos e divinos.

2010-03-16 02:24:00

       
  

Um amador

Amava aquém do amor
indigno descoberto do visco do sublime
epidermicamente limitado
à carnadura do sentimento

Não era correspondido e não se correspondia
no que fosse seu desprincípio amoroso:
princípio sem fim, justaposto à tentativa fracassada
de desinvenção do desejo
que insistia em ser criado,
não obstante a teimosia do instinto,
este também limitado pela feroz lógica
das razões que norteavam as paixões

Amava torto por ausência de retas
Amava errado por ausência de nortes
Amava sobretudo por inexistência de opção
posto que no vazio também amava a idéia do nada

Amava além do aquém de si mesmo
Amava para sua salvação:
infantil em sua pretensa verdade imatura
havia de não acreditar em nada que não fosse amor

Amava sim imaturamente
para não ter de apodrecer
antes de brotar.