2010-02-24 01:17:00

       
  

Necrológio de um permanecente

Não tenho tempo para morrer
porque me descuido da vida
tergiverso de fatos e circunstâncias
irremediáveis e irredimíveis
Minha lânguida covardia
me salva da criação do meu fim

Sem tempo para a morte
porque tempo se cria
na revelação do hiato
entre uma intenção e um nada

porque morte não há
para o que se condena a estar vivo
na métrica de uma angústia planificada
postumamente à sua anulação

Não tenho tempo para morrer
porque de vida me consumo
porque de vida me anulo e me aninho
no colo das sutis mortes cotidianas
de meu tempo

Onde morte há(talvez)  habite
a pretensa ilusão de um fim

Que seja

Meu fim eu entranho em meu princípio
onde o tempo é artífice de meu autismo voluntário
e consciente
do vital sonambulismo
onde permaneço

sem tempo
sem morte.

2010-01-22 01:16:00

       
  

Do que venha a ser

Sou mais aquilo que não fiz de mim
sou o que sendo poderia ser
projeto inacabado de presente
onde trespassado pela ausência
soergo a diáspora de receios e anseios
a outros mesmos cantos do que eu seria

Sou também o que me fizeram
tangenciado por acertos erros e projetos de outrem
objeto talhado pela (in) consciência coletiva
embalado pelas mãos do sono, do ódio e do afeto
que me despertam da ilusão de ser um só

Sou este ente pensado
criado recortado bricolado
pelo teorema dos meus nossos juízos sobrepostos
o mamulengo da sorte
a morder as cordas que me prendem e me protegem da queda

Sou o recorrente suicídio,
calculado tacitamente por intenções contrárias
como desculpa e apelo à permanência

Sou definitivamente a farsa do meu fim

Sou o histrião da repetição da invenção humana
a gargalhar da própria difusa fecundidade

Seria até minha desconstrução
não fosse esta meritosa condenação
de-supostamente-ser alguém.

2009-12-09 22:57:00

       
  

Sentido

É também um sentido
a falta de sentido
precário provisório-como os demais
Sentido às pressas
a inventar a urdidura
de um quase nada fugaz
Avesso-como os demais
a tudo que o anula
permeável porém
à sua contradição
que é tudo o mais
que o ampara
e o permuta
por tramas iguais

É também sentido
o sentido da falta
à falta que faz
esta ausência arguta
a imprimir sentido
em dores reais.

2009-11-08 17:01:00

       
  

As mortes que vivi

Das mortes que vivi
muitas não me mataram
Outras ressuscitaram
a fonte em que jaz o que perdi

Das mortes que me habitam
todas quantas me traduzem
as graças turvas que reluzem
aos ocos ódios que me incitam

Às mortes que matei
presto fúnebre estima
do que em inútil esgrima
me perdi no que ganhei

As mortes que vivi
de pouco me valeram
e a esmo pereceram
no vão do nada que perdi

Das mortes que vivi
muitas há que não cri
e em mortes não crendo
por tudo ou nada não morrendo

em vida ainda não morri.

2009-10-26 08:25:00

       
  

Ligeiro questionamento metafísico

Renunciar a que, se acaso fui renunciado
por meu desejo e intento?
Circunstanciado, crucificado pelos fatos,
me vejo em pagão dilema:
posto que a honra da recusa me  foi imposta pela falta,
serei probo, santo, herói, ainda que tergiversado de convicção?
Cínico também não, insciente do despropósito que não me redime
nem sequer me define.

Bezerro indigo do sacrifício,

sacrfício indigno aos comensais,

serei eu mártir à revelia,
avesso à tortura canônica,
tangenciado pelos desconsolos da fome de Outrem,
cuja piada transcendente
digna de beato escárnio
encarna-se em humano destino? 

Bênção à deriva, minha inação enviesada
será ungida pela revelação da dúvida
que alimenta  a pureza espúria
do que quer que habite meu abate.

2009-08-10 01:14:00

       
  

Dois poemas

À ESPERA

 

Desde sempre, ainda te espero

quando tua ausência já se firmava

e fincava a esperança da morte de nosso abandono

 

Te espero continuamente

desde antes e depois

da espera de caminharmos juntos

não um caminho contínuo

mas um emaranhar de passos entrecruzados

desencontrados no encontro desesperado

de nossas encruzilhadas

 

Te espero no retorno

do que não foi ou será

mas na volta cíclica do que é

ou de além do que venha a ser

na perene presença da ânsia

na vinda eterna da descoberta sacralizada

na memória brutalmente onírica do instante

que arrebenta a fome do toque esperado

que inviabiliza o tempo

que implode a espera

e que revela tua presença atemporalmente

mais próxima

do que jamais conceberá a distância

 

DESAFORO AFETIVO

 

Não mais possuo os restos vivos

do teu desejo fabricado pelas circunstâncias:

é de outro hoje e sempre por enquanto

teu corpo materializado pela perda

Mas ainda sobrevive, impávido, o vislumbre constante

das tergiversações de teus (des) propósitos

 

Meu chão renovado é a tua impermanência

onde me aninho no ventre prenhe de tua incerteza

Meu esteio é o contorno infantil

de teus lábios crispados

em tortuoso  irônico pretenso sorriso vitorioso

 

a zombar-inadvertidamente ambivalente-

insciente de teus tropeços calculados

e da urdidura de tuas quedas

 

Meus afetos sinceros

vão para teus nossos projetos previamente destroçados

onde e quando então, de nossos pedaços misturados

recolherei fragmentos

da memória de nossos corpos unificados

 

e erguerei a estátua de nosso assombro despedaçado.

 

 

 

 

 

 

 

2009-05-18 10:32:00

       
  

Feliz

De onde vem este sopro frugal
a macular minha doença?
Que verso compassado é este
que desalinha minha encruzilhada?

O esboço do corpo inviável desaba
ao toque estéril da alegria primeira

Ora virulento, o afago da felicidade
não mais se coaduna
ao sentido torpe de desvio
batizado por meu tempo

Protesto contra toda beleza
que, injusta,
corrói o bem comum,
esquartejado pelo desejo

Protesto contra o ego,
este que agora me encima
e me embrulha
oferecendo-me à doçura nefasta
de minha complacência

Protesto contra o êxtase,
que estupra meu sono

Protesto contra a plenitude,
que me arranca de meu beco

Mas meu berro não reverbera aos meus ouvidos
que só ouvem
o surdo som de meu sorriso.

2009-05-10 04:20:00

       
  

Outro dia

Livrai-me do nada, eu pedia
E o nada persistia
Bravio, indômito, a vencer o meu dia
Como, de resto, nada mais podia
contra o nada, me rendi,furibundo
com nada mais a colher do mundo

Mas eis que um certo velho dia
do nada, plantei a epifania:
do pretenso nada criado, criei seu avesso
tatuado na carnadura do começo
de um ato trespassado por seu fim
(liberto de nada, enfim?):

bastou um aceno ao vento
e este, em prestimoso lamento
me soprou, em tediosa harmonia
que o nada nada mais podia
contra a brutal indiferença
do nascer de um novo dia

Livrai-me do nada, eu pedia
e em alegre desespero, percebia
que de seu provisório desterro
o falso nada por tudo me sorria.

2009-05-01 01:40:00

       
  

Fábrica

O fato se perde
nas divagações que o sugerem

Perde-se a natureza
na origem da semente
do fruto do desejo
que a concebe

Plácida, toda intenção de real
dilui-se na fábrica do acaso

De fábrica em fábrica, revela-se
o espelho do que inexiste:
toda morte é um hiato da imaginação
toda vida é um atropelo da carne que a ultrapassa

Perfaz-se a curva(também fabricada)
que retorce as tangentes
e sublima as retas:
do afeto-também fábrica-restamos nós
iludidos
enganados
agraciados
por nossa opção única
de eterna reinvenção.

2009-03-23 23:43:00

       
  

Vidicídio

Plantei em solo fértil o broto de minha cova
Sou a fenda vertical
de minha autópsia expansiva
viva
cavada aos pés do que me encima

Coberto de terra e céu
me esquivo da sobrevida
onde avesso ao meio
prendo o fim ao princípio
assim como seja em particípio
e para todo o sempre Amém

Plantei em solo fértil o broto de minha cova
e colho agora meu cadáver sorridente
que me incita à vida.