2009-03-01 03:55:00

       
  

Sem musa

Canto em silêncio o que não sei cantar
Canto o voo sem asas do sobrepeso do nada
a incensar o berro incontido da impossibilidade

Canto aquém de mim
o que poderia ser
a música insciente
do que me supera e me atravessa
o som dos ouvidos surdos
que aplaudem meu fim

Canto por fim o princípio do cantar
que é dizer ao léu
gradiloquentemente
a mudez da sobrevida
à luta perdida

que se ganha porém à margem do eco
destoada do coro consonante
da profissão de vozes uniformes

Canto o amador que ama torto
o canto trespassado pelas vaias do mérito
Canto o improviso sublime
do ensaio do despreparo.

2009-02-07 04:34:00

       
  

Manifesto da inabilidade

Nós, os inábeis, venceremos
pelo triunfo desenganado de nossas perdas
Por nossa atuação canhestra
haveremos de estabelecer a pedra fundamental
da apoteose do despreparo:
histriônicos, canastrões, falsários
de nossos sentimentos contrafeitos,
revelaremos pelo avesso
o disfarce de nossa nudez
expectorada aos cantos
de nossos vícios enviesados,
banhando de verdades tortas
o aleijão de nossas virtudes inacabadas

Nós, os inábeis, por nossa queda burlesca
desataremos o nó do sublime
descortinando a já anciã descoberta
de nossa ignorância ancestral-
bálsamo  mais afetivo de nossa inutilidade

Nós, os inábeis,por nossa impostura sem cálculo,
infantes,esboçaremos o desenho febril
de nossa natureza fabricada

Nós, os inábeis, somos muitos, somos todos
Só nos falta o mútuo reconhecimento
para o sucesso luminoso de nossas sombras.

2008-11-30 02:12:00

       
  

Nada menos

Nada
menos que nada:
aquém da possibilidade do silêncio
matura esta ínfima morte cotidiana
escoando nos póros, valas abertas
de um projeto inacabado de solidão


menos que só:
a companhia da pele nodosa
e seus despojos de sangue e mágoa
ressoando sombras de descaminhos
na treva esmaecida da memória do amanhã
onde refulge esta luz negra
que ilumina toda palavra

Agora, já não mais:
nada, menos que nada
à espera de algo menos
que esta paz angustiante
que sufoca tudo mais.

2008-10-17 09:59:00

       
  

Criança

Nasce amor, obtuso, ignaro,
entre espasmos de espanto e medo
sujo da placenta viscosa do sublime
berrando pela perda do plácido conforto
do desejo indiferente
 
Cortado o cordão do ego uterino
segue amor em sua gênese intermitente
coberto de dor e espera
evacuando o vácuo da solidão
nas dores de seu crescimento
 
Tocando a existência
tateando a busca de seu sentido
morre amor em silêncio precoce
antecipando sua procriação senil.
 

2008-08-30 19:37:00

       
  

Um cão, apenas.

Um cão me olha
em bruta súplica de afeto
sem ambigüidade latente:
plácido translúcido mendicante
 
Atendo ao apelo do cão
entre constrangido e complacente
ao humano reflexo canino
do meu ganido silencioso:
enviesado turvo mendicante
 
O cão festeja  meu toque
sem pejos ou escrúpulos de vergonha
insciente da minha pretensa indiferença calculada.

2008-07-16 00:10:00

       
  

O enxadrista

Para ser vencido é preciso complacência
afeto distribuído às pequenas mortes do dia
carinho às supostas injustiças sofridas
 
que justas ou indiferentes aos alheios
reverberam em nós, derrotados,
como íntimo contrapeso de um nada
que nos redime de nossa consciência
 
Aos vencedores, o aleitamento do ego
Aos ceifados pelo aborto do triunfo
a semeadura dos cacos do reflexo partido
que adoçará a boca dos rebentos da utopia
 
Para ser vencido é necessário um parto
para dentro de si mesmo.

2008-06-24 23:34:00

       
  

Meu Credo

 

Creio no que crio
no que não me pertence
na posse de minhas perdas
 
Creio no recomeço de um fim que não finda
no propósito que não define seu objeto
e que ama despropositadamente
 
Creio na mácula recôndita e indelével do branco
que translúcida filtra sua impureza
na virgindade fecunda dos desonestos
 
Creio na luz
que cega os atores de uma peça sem enredo
inventores de uma historieta de cochia
 
reconfortados pelo apagar dos refletores
que refletem suas sombras no tablado
onde ressuscitará um novo elenco
 
Creio nas chagas abertas de um Cristo Criado
à imagem e semelhança de um Deus Imperfeito
feito carne,sublimação do tédio do sublime
 
Crio o meu Credo à imagem de minha criação
Crio minha crença, minha filha sem dogma
que abortará a gênese da certeza.
 

2008-06-01 10:00:00

       
  

Contradições coerentes e inconclusivas

Nada sobrevive ao tempo
senão o íntimo desejo
da permanência do afeto
 
Nada sobrevive ao tempo
senão a irrealidade corpórea
do desejo de um fim
 
Sobreviverá o tempo, indiferente ao desejo,
qual invenção humana
na contagem dos despojos
da perda do eterno
inaugurada pela consciência
 
Morrerá o tempo, complacente ao desejo,
qual invenção humana
na contagem dos ganhos
da criação da consciência
 
Reviverá o afeto,
qual realidade humana
reinaugurando o desejo
da restauração do tempo
 
Tudo sobreviverá ao humano
que subsiste à sua perene sobrevivência reinventada.

2008-05-07 14:05:00

       
  

Não basta

Te tocar não basta
Necessito sorver o tempo
que te habita
colando à minha sombra
tua eternidade fabricada
 
Te reter não basta
Quero antes escalpelar tua alma
entranhando nosso desejo
abaixo de nossa pele univitelina
confluindo nosso afeto
em uma só carne incestuosa
 
Não me bastas tu
mas a camada além
que reveste o reflexo
do teu corpo recomposto
no fluxo da memória
no refluxo do esquecimento
 
Não nos bastamos
mas para dentro de nossa incompletude
nos mesclamos em diáfano desencaixe imperfeito.
 

2008-03-28 10:30:00

       
  

Chantagem

Teu segredo inexistente se revela na projeção da tua virtude
                                      
se desvela na ação do teu vício
                                       se
perfaz na criação da tua face
 
Eu te chantageio pela digna mentira da tua persona
que ressoa o sonho da revelação
da natureza enganosa de uma pretensa verdade
 
Eu te chantageio(suavemente)
por te encontrares na irônica sombra
do teu avesso que sequer inverte
quem supostamente serias
 
Teu segredo inexistente existe de fato e de criação
na permanência lúcida dos teus enganos
na ação sábia e generosa da tua ignorância consentida
 
Tu agora és outro e já desarraigado de minha chantagem
estendes a mão cega ao teu próximo-teu único reflexo tátil.