2008-02-29 14:04:00

       
  

Colheita

lamberás o fruto da promessa
semearás o grão do sonho
quando for tempo de engenho do afeto
 
Cuspirás a semente do fracasso
que, do chão, germinará a erva do desgosto
que enraizará teus pés ao solo movediço
que encobrirá teu corpo de casca espessa e árida
 
E tu, então, serás o próximo fruto a ser colhido
quando novamente for tempo de promessa.

2007-12-19 21:07:00

       
  

Trama

Volátil, incongruente de sua incompetência,
propositadamente o propósito se refaz no caminho
Réptil avesso à circunstância, rasteja por aparente acaso
legando ao chão rastros de um premeditado fracasso
 
Pára
Fareja o murmúrio da ausência
Retoma os espaços vazios 
Reconduz o trajeto vitalício e natimorto
de sua melodia perene e nodosa
constante aos seus ouvidos já surdos de seus restos
 
Retoma os passos ao avesso
pelo reflexo invertido no espelho
Atravessa os becos do tempo perdido
Morre novamente
no ciclo espiralado de sua utopia
Renasce no recomeço de seu fim
 
Arrebenta a crisálida
Epifânico, reinaugura sua encruzilhada.

2007-11-07 14:38:00

       
  

Da beleza: baixas acepções

Beleza torta, turva, velada nos extertores do instinto

Beleza infame, calcada na vergonha da necessidade

sublime da sublimação da falta

 

que se alimenta da fome canhestra

do torpor de um ilusório fim de sentido

 

que se arrasta aos solavancos, em desesperada busca

de chão movediço que resvale num resto de horizonte

 

Beleza paga, vendida nas quitandas dos desvios de caráter

comprada aos pés da apoteose da carência

 

que morre na epifania da contemplação da culpa

que renasce no vazio tátil da imagem refletida

 

Beleza inútil, nula,que adorna os desvãos do nada.

2007-10-06 01:41:00

       
  

Nós

Sós, entrelaçamos nossas vozes
em nosso silêncio compartilhado
Tateamos a sombra mais próxima
a fim de estabelecer
a raiz da fundação de um eco
 
Será inútil,
mas da inutilidade
da concepção de um sentido palpável
brotará o toque do vento
que nos aliviará
da tentativa estéril e exasperada
 
Desatados de tudo aquém
nós entrelaçados
ventres abandonados
nos cobrimos da placenta do próximo.
 

2007-09-18 19:15:00

       
  

Declaração

Eu te amo aos pedaços, fatiada
ao acre tempero da ilusão
entranhada no desgosto do nada
desejada nos desvios do não
 
Amo em ti a negativa atávica
atada ao meu reflexo martirizado
Amo tua sombra previamente trágica
fossilizando meu futuro macerado
 
Amo o desvelo dos descaminhos cruzados
percorrendo a pele ilícita do teu corpo etéreo
Amo a tortura do tempo nos olhos varados
ressoando nas vísceras de um feto funéreo
 
Amo a frágil inconsistência de um fracasso
realizado às margens de um toque consumado
Amo, qual Cristo, crucificar-me em quase abraço
a revelar a insânia de um amor crucificado.

2007-08-08 17:24:00

       
  

Sadomasoquismo

Cai o espasmo de uma incerta melancolia
e do chão brotam de seus restos
frutos duvidosos de futuros sorrisos destroçados

Rasga-se o disfarce do desgosto
e de seus andrajos compõe-se a fantasia premeditada
de um carnaval insidioso que corrói toda nudez

Arranca-se da dor sua íntima expressão de prazer
Acalenta-se fracassos a serem convertidos
em sinais de uma pretensa aprendizagem

Queima-se o luto intemporal do desengano
e da chama desrespeitosa à treva necessária
nasce a fagulha que incendeia o descaso
de um corpo avesso ao seu repouso

Da cópula primeira, a semente
do torturante prazer da desnecessidade de sentido

Da cópula perene, a deleitável tortura
do princípio de um fim que não se concretiza.

2007-06-29 19:30:00

       
  

Enterro de uma possível ressurreição

O tédio corroeu meu poema:
entranhou-se no verso quebrado
da minha rotina carcomida
pela prosa burocrática do cotidiano

A preguiça estancou minha epifania:
esmaeceu o hiato épico
do instante lânguido  do encantamento
somou a contagem cartesiana
dos segundos do porvir desenganado
aos anos escoados no passado desencantado

O sono matou meu sonho:
emprenhou de cansaçoes turvos
a inconsciência da memória criativa
impôs a lógica de uma treva calculada
à ficção feérica da invenção de mim mesmo

A espera matou minha esperança:
cumulou de desgostos entulhados
a utopia reticente aos fatos
que descrevia o lugar nenhum
de uma gênese sempre ressucitada

O poema, no entanto, segue adiante
coroado pelo esquife que o abriga
sorrindo capenga dos destroços
que redimem sua glória previamente arruinada.

2007-05-31 06:21:00

       
  

Um gesto

O toque fugidio de tua mão em meu braço:
ode canhestra ao acaso em descompasso.
 
Seria uma desatenção calculada do momento
ou epifania desarticulada enclausurando o tempo?
 
Seria a distensão lírica de um atalho
ou afeto bruto coroado em ato falho?
 
A resposta inconclusa de um suposto unguento
será o silencioso espasmo de meu tormento,
 
seria, não fosse a memória fossilizada
no apetite de uma circunstância,
 
a minha espessa sombra martirizada
na angústia de uma eterna ânsia
 
(o desvio do teu olhar em constrangimento
 reconduz o tempo a seus recortes formais
 
 desterrando o gesto do seu intento
 a ele arraigando epopéias abissais).

 

  

2007-05-21 23:09:00

       
  

Estilhaço de um reflexo partido

Quem é este que me espreita em meu reflexo?
Avesso turvo de um eu ignorado
imagem pedaço de um Narciso estilhaçado
sombra túrgida de um corpo desconexo

Princípio já antigo de um velho conformado
às nuanças da curva de uma espiral descendente
Reencontro atávico ao feto afluente
epitáfio vivo de um sonho ressuscitado

A que projeção se destina a imagem
partida da intenção de meu projeto?
Reflexo retórico de um espelho abjeto

a esterilizar o avesso de uma miragem:
tortura miserável a ser consentida
entre o embrião imaginário e o personagem sem vida.

2007-05-10 12:58:00

       
  

Invisível

Ainda não me veem
mas já tomam de assalto
o que nunca me pertenceu

Já não me tocam
e contemplam o vazio tátil
das minhas chagas abertas

Percebem através do que não sou
a sombra viva da caricatura
dos meus ganhos em perspectiva

Intuem do toque sem tato
a pele ressequida pelas perdas
passadas em projeção

Dos olhos, vislumbram o tempo entranhado
nos desvios do desejo não consumado

Dos olhos, vislumbram a vida despendida
nas edificações dos atos trespassados

Não me veem
mas já constroem o monumento vivo
das ruínas que são – ou creem- minhas.