Colheita
Poesia
Colheita
Trama
Da beleza: baixas acepções
Beleza torta, turva, velada nos extertores do instinto
Beleza infame, calcada na vergonha da necessidade
sublime da sublimação da falta
que se alimenta da fome canhestra
do torpor de um ilusório fim de sentido
que se arrasta aos solavancos, em desesperada busca
de chão movediço que resvale num resto de horizonte
Beleza paga, vendida nas quitandas dos desvios de caráter
comprada aos pés da apoteose da carência
que morre na epifania da contemplação da culpa
que renasce no vazio tátil da imagem refletida
Beleza inútil, nula,que adorna os desvãos do nada.
Nós
Declaração
Sadomasoquismo
Cai o espasmo de uma incerta melancolia
e do chão brotam de seus restos
frutos duvidosos de futuros sorrisos destroçados
Rasga-se o disfarce do desgosto
e de seus andrajos compõe-se a fantasia premeditada
de um carnaval insidioso que corrói toda nudez
Arranca-se da dor sua íntima expressão de prazer
Acalenta-se fracassos a serem convertidos
em sinais de uma pretensa aprendizagem
Queima-se o luto intemporal do desengano
e da chama desrespeitosa à treva necessária
nasce a fagulha que incendeia o descaso
de um corpo avesso ao seu repouso
Da cópula primeira, a semente
do torturante prazer da desnecessidade de sentido
Da cópula perene, a deleitável tortura
do princípio de um fim que não se concretiza.
Enterro de uma possível ressurreição
O tédio corroeu meu poema:
entranhou-se no verso quebrado
da minha rotina carcomida
pela prosa burocrática do cotidiano
A preguiça estancou minha epifania:
esmaeceu o hiato épico
do instante lânguido do encantamento
somou a contagem cartesiana
dos segundos do porvir desenganado
aos anos escoados no passado desencantado
O sono matou meu sonho:
emprenhou de cansaçoes turvos
a inconsciência da memória criativa
impôs a lógica de uma treva calculada
à ficção feérica da invenção de mim mesmo
A espera matou minha esperança:
cumulou de desgostos entulhados
a utopia reticente aos fatos
que descrevia o lugar nenhum
de uma gênese sempre ressucitada
O poema, no entanto, segue adiante
coroado pelo esquife que o abriga
sorrindo capenga dos destroços
que redimem sua glória previamente arruinada.
Um gesto
Estilhaço de um reflexo partido
Quem é este que me espreita em meu reflexo?
Avesso turvo de um eu ignorado
imagem pedaço de um Narciso estilhaçado
sombra túrgida de um corpo desconexo
Princípio já antigo de um velho conformado
às nuanças da curva de uma espiral descendente
Reencontro atávico ao feto afluente
epitáfio vivo de um sonho ressuscitado
A que projeção se destina a imagem
partida da intenção de meu projeto?
Reflexo retórico de um espelho abjeto
a esterilizar o avesso de uma miragem:
tortura miserável a ser consentida
entre o embrião imaginário e o personagem sem vida.
Invisível
Já não me tocam
e contemplam o vazio tátil
das minhas chagas abertas
Percebem através do que não sou
a sombra viva da caricatura
dos meus ganhos em perspectiva
Intuem do toque sem tato
a pele ressequida pelas perdas
passadas em projeção
Dos olhos, vislumbram o tempo entranhado
nos desvios do desejo não consumado
Dos olhos, vislumbram a vida despendida
nas edificações dos atos trespassados
Não me veem
mas já constroem o monumento vivo
das ruínas que são – ou creem- minhas.