2005-11-13 22:08:00

       
  

Pele deserta

Sugava exasperado o leite já seco do seio negado
Sorvia ávido a afirmação atávica de uma negativa atemporal
tatuada na pele onde se estabelecia o desenho estratificado
do abismo entre um corpo e outro
entre mãos que nunca se deram
entre braços que nunca se enlaçaram
entre vozes que nunca ouviram o eco de um desejo imemorial
 
O muro edificado de complacentes intenções ao vento
Entre pontes próximas o nada materializado
dando livre vazão à não respiração dos póros
de um castelo insuportavelmente seguro
A não obtenção de respostas em resposta
à não formulação de perguntas
(utopia da única comunicação possível)
 
Ainda esta profusão de vozes
berrando surdas silêncios estridentes
Ainda este toque não consumado
abandonando mãos espalmadas em busca de matéria viva
Mãos em interrogação desesperada
eloquentes em sua descompostura patética
 
Corpos que não se misturam
que não atendem ao apelo ancestral
de uma mútua dilaceração
antes cultivam a sede que incita a ânsia infinita
Tempo que não se coaduna ao desejo de uma novidade já gasta
já esmaecida pela lembrança de um mesmo rosto colado ao próximo
de um mesmo seio negado onde se suga novamente
o mesmo leite outrora e já outra vez seco.

  

2005-11-08 21:27:00

       
  

A trágica perda do deslumbramento

Perdi a capacidade de me
deslumbrar.Com qualquer coisa.Mais complicado: percebo metódica e
racionalmente aquela fagulha de um certo encanto mais concreto que se
instaura dentro de mim diante de alguma novidade sedutora, ou seja,
sinto o início do deslumbre e não consigo mais então me embasbacar com a
idéia ou com a coisa em si.Consequentemente, me brota aquele sorrisinho
de escárnio meio déja vu, aquele sensação de já haver experimentado
aquela mesma sensação de admiração incondicional de passionalidade
absoluta por algo.

Se chamam isto de maturidade , vá la, concordo.Mas
que é meio chato, é.Como se o mundo perdesse um pouco a graça, se
tornando meio preto e branco, meio acinzentado.Este negócio de trocar
paixão por sabedoria pode até ser bom em termos bíblicos ou filosóficos,
mas em termos pragmáticos, é muito enfadonho se tornar um pragmático.Me
sinto hoje quase um objeto de estudo geriátrico.Perdi minhas espinhas
físicas e simbólicas.

Sim, porque o deslumbramemnto é uma característica
eminentemente adolescente.O suspiro de uma primeira paixão, do primeiro
encantamento com uma primeira ideologia(geralmente de esquerda festiva),
a primeira sensação de se tornar intelectualmente independente, de se
rebelar contra o status quo.Enfim, estas tolices necessárias ao ego e a
sua consequente destruição pelos fatos subsequentes;a consequente
desilusão e o consequente desencanto oriundo do passar do tempo.Tudo uma
maravilha até que fatalmente se prova o contrário.

Tenho uma inveja subliminar e intratável dos imbecis
que não amadurecem.Ah, não falo apenas de eternos adolescentes
estratificados como o Supla e seu papai.O deslumbramento intelectual
também é pesado, principalmente em terras tupiniquins.Agora mesmo leio,
com o velho e trágico sorrisinho de escárnio, uma entrevista da doublê
de filósofa Marilena Chauí que afirma que a crise de governo do PT é
produto da mídia e da luta de >

Tenho esta inveja amarga, subcutânea, metafisicamente
irrevesível destes que se deixam deslumbrar por idéias estapafúrdias,
compreendem?Principalmente por idéias políticas equivocadas, uma vez que
estas arrastam vidas em nome de um feérico sonho de patacuada. O bom
senso não me deixa mais cair nestas prazeirosas armadilhas que nos
salvam da realidade.Realidade não só dos fatos, mas realidade das
coisas, da vida, dos elementos mais banais que nos circundam.A realidade
pesa.E arte definitivamente não ajuda, uma vez que arte(arte
verdadeira, digo) também é produto da incapacidade de se deslumbrar,
fonte de desgostos transmutada em elemento estético.Arte, já disse e
repito, é masoquismo sofisticado.

O que me resta hoje em dia( e o que me consola) como exceção é o
deslumbramento pelo sexo oposto.Ainda creio ser capaz de me apaixonar,
mesmo sabendo das consequências.Algumas imbecilidades aqui e outras
cegueiras acolá compensam até uma vida inteira de sensatez , meus
caros.Mas só algumas.E bem poucas.

  

2005-11-02 21:40:00

       
  

O mais válido tipo de turismo

No Rio de janeiro , proibiram o uso
de imagens que denotem algum apelo sexual em cartões postais.As imagens
em questão eram fotos que mostravam glúteos e outros adornos salientes
de senhoritas opulentas que se misturavam às curvas da paisagem
carioca.O motivo da proibição seria o suposto incentivo ao turismo
sexual provocado pelo apelo instintivo das formas das moças.

Sou contra a proibição.Radicalmente.Ora, se o pão de
açúcar é um ícone da paisagem carioca e brasileira, porque as célebres
curvas das moçoilas tupiniquins também não o podem ser?Ícones muito mais
vibrantes, muito mais personificados e vivos(metaforicamente ou não)
dos atrativos turísticos brasileiros.Sim, sim, as tais imagens sexuais
eventualmente atraem o turismo sexual.Mas que mal tem?A principal fonte
de turismo é a sexual, ora esta.Eu mesmo já pensei em algumas viagens à
Suécia e a outros países nórdicos não só por curiosidade pela cultura
local, mas também para travar amizade com algumas encantadoras
caucasianas diáfanas.

E, por favor, não confundam turismo sexual com
prostituição.Turismo sexual você pode fazer até ao visitar a casa de sua
vizinha.Lascívia não respeita limites geográficos.Ao contrário:a
luxúria é um vício virtuoso que desonera de si quaisquer impostos
alfandegários de pecado ou qualquer outra perversão parecida.O interesse
sexual pode e deve ser levado em consideração no objetivo
de alguma viagem.Se isto suscita ou não a prostituição ,
não tem necessariamante diretamente que ver nem
com as razões turísticas dos turistas nem com quem promove
este tipo de turismo.Compras e vendas de quaisquer ordem- mesmo de
corpos e almas- são questões íntimas a serem tratadas de pessoa à
pessoa.Se há aí alguma exploração meio sórdida(pedofilia, escravização
branca, etc) o estado que resolva e ponto.Mas não venham afanar o
direito sagrado do viajante de buscar avaliar outras culturas, e dentro
deste desbravamento cultural, está lícito o direito de travar
conhecimento-bíblico ou não- com senhoritas de outras origens, outras
etnias, fluentes em outras línguas(perdoem a infame metáfora sem
intenção, sim?).

Mania medieval e carola esta de achar que corpos
humanos possuem o gérmen do pecado e do erro, que corpos são sagrados e
proibidos.Balela.O direito à posse do corpo é de seu(sua) dono(a);mas o
direito a olhar um corpo é de quem o vê.Não existe estupro visual.Todos
têm o direito à curiosidade.Além do que, esta questão da proibição de
partes do corpo é meramente cultural e beira a esquizofrenia.No Egito
antigo, por exemplo, mulheres andavam com os seios a mostra e com os pés
calçados sempre, porque estes eram considerados mais sexualizados e
obscenos do que aqueles.Se você pegar um livro qualquer de Machado de
Assis do século dezenove, verá inúmeras referências a braços sensuais e
calcanhares luxuriosos.Não adianta proibir, tapar, que o foco da
lascívia sempre se manifestará em alguma parte do corpo humano.Nem que
seja no dedo mindinho.

E, metafísicas sexuais à parte,há também razões sociológicas para o
desbunde da libertação dos instintos turísticos.Ora, sejamos francos:em
um cidade como o Rio, em que todos andam seminus, qual a razão para
alarde com uma mulher de biquíni em um cartão postal?Antes pelo
contrário, as curvas de uma gentil dama carioca dão pleno azo aos ditos
que tratam o Rio de janeiro como cidade maravilhosa.Eu, cá pra mim, não
troco os encantos de um corpo feminino por todas as maravilhas de uma
capela Sistina nem pelos deslumbres do Grand Canyon.Muito menos pelo pão
de açúcar.

  

2005-10-28 22:23:00

       
  

Banhos

Lavo-me do peso de uma sobrevida em interrogação
que entope meus póros com questões aglutinadas
 
Sujeira estéril de tragédias purulentas intumescidas
Sujeira indelével coroando a marca de minhas pegadas
sobre meu corpo já imundo de minha presença
 
Lavo-me de mim mesmo
Lavo-me da beatitude hedionda de minha ingenuidade latente
da doçura calculada e maculada da próxima frase melíflua
transformada a seguir em generosidade indolente
para com meus dejetos internos
 
Lavagem feérica de lama asséptica e desnaturada
Varredura do tempo escoado pelo ralo
Filtragem de uma história quase inútil
esfregando as cercanias de ações malversadas chances desperdiçadas
redimindo mãos pés e corpos conspurcados por atos túrgidos
o caminho branco e límpido
em meio ao esgoto esterilizado por eficazes óculos escuros
 
E eis que após o banho
nos sobrevêem o hálito de novas sujeiras a fins
novos lamaçais nos cobrindo de lodo revigorante:
mais metafísicas nodosas e movediças em acúmulo
 
E então me recolho ao barro atávico que não cura
antes embaralha pegadas e confunde as formas
aquele mesmo que me afasta de fontes cristalinas de água suspeita
 
E eis que me volto ao pó original
que decanta e redime a necessária sujeira nossa de cada dia.

2005-10-24 22:32:00

       
  

Definições arbitrárias quase justas e suas consequências

Que diabos é ser você mesmo?Isto não
existe, ora esta.Estas >

A vida é tal e qual aquela lei clássica da física, a
única que decorei(sabia que era por alguma razão):a cada reação
corresponde uma reação.Assim com tudo.Na dalética da história, em um
simples diálogo, em uma tese de doutorado, em uma obra de arte, e
também, claro, com sentimentos como amor e ódio.Quem nunca odiou, não
sabe amar direito.Ama como padre ou líder espiritual, com aquele amor
plácido, xôxo, aguado e sem graça.Amor coletivo é coisa estranha.Ninguém
ama tudo e todos ao mesmo tempo.Admito a hipótese carola de abraçar a
sua cruz, de assimilar toda a realidade à sua volta,mas amar o tempo
todo com sorriso complacente é coisa de psicóticos.Escolhe-se o
que se ama ou se odeia. E justamente estas escolhas amorosas ou
odiosas dão as devidas máscaras ajustáveis ao caráter que você vai
compondo aos poucos com o que você tem mais à mão.Caso seja um bocó
apalermado, vai se contentar com o universozinho ao seu redor, e aí,
pobre coitado, se for brasileiro, ,provavelmente se tornará um admirador
de pagode , axé music e fatalmente se transformará em um barrigudinho
desdentado contente da vida cantando para a vida te deixar levar.Mais ou
menos detestável você será de acordo com sua simpatia, mas sempre
detestável.Cumprirá, pois , a função social de ser menosprezado por
gente melhor que você.Além de ser útil, estará em maioria e geralmente
se sentirá em casa.E nunca desconfiará, nem de longe, que é uma
criaturinha detestável.Muito pelo contrário:será bem feliz.

Caso não se adapte ao seu meio, haverá de ler, ouvir e
assistir o que não diz diretamente respeito ao se habitat, mas diz
respeito a algo maior que diz respeito a tudo o mais e além.Se ler
um coisinha aqui , outra acolá, ver um negocinho ou outro, se tornará um
pedante, talvez ainda mais detestável que os detestáveis
popularescos.Se ler e ver um tantinho mais, com algum critério melhor de
seleção, há alguma chance de se tornar alguém razoavelmente
interessante, o que já lhe bota em uma rarefeita minoria.Ser alguém
inteligente já depende um tanto de algumas características inatas.E ,
meu caro, nascendo inteligente, aproveitando sua inteligência, apurando o
bom gosto e observando mais precisamente o que acontece ao seu redor,
tenho a lhe dizer que as chances de se tornar um solitário infeliz são
grandes, a não ser que você nasça no lugar certo , no momento certo.Já
imaginaram quantos Shakespeares ou Mozarts em potencial não foram
desperdiçados nascendo na Uganda?Sim sim, com raras, raríssimas
exceções, o meio em que se vive é uma nhaca que atrapalha até mesmo os
mais geniais.Poucos são os que, além do talento, têm força de vontade
suficiente para superar algumas barreiras.Por vezes, a inteligência é
até mesmo uma barreira para se tornar um radical em defesa de causa
própria.Yeats dizia com razão que os piores sempre são cheios de
intensidade passional enquanto os melhores são quase sempre meio
borocochôs.Verdade.Há que se lembrar, claro, que Yeats, um inglês de
fino berço, nasceu na hora e no lugar certo para explorar sua
genialidade.

De qualquer modo, não se preocupe em ser genial que, de uma maneira
ou de outra,o negócio dá muito trabalho.Esta coisa de
enfrentar moinhos de ventos é de fato uma constante na vida desta
gente.E dá trabalho, muito trabalho.Pode até ser recompensador, de
alguma forma, mas a recompensa é muito abstrata, e não é visível a olho
nu por quase ninguém, principalmente por aqueles barrigudos que se
entopem de Chopp e de pagode, os tais detestáveis felizes que
mencionei.Pensar dói, caros.Pensar de maneira muito sofisticada, então,
causa cefaléia metafísica permanente.E a ressaca, apesar de poder ser
eventualmente abonadora para o resto da humanidade, traz prejuízos à sua
saúde individual.Então, pense bem se quer de fato pensar direito e se
tornar, eventualmente, alguém adorável intrinsecamente, mas adorado por
alguns poucos(às vezes, quase ninguém).

2005-10-19 22:27:00

       
  

Aos teimosos, com carinho.

Nada melhor que um erro público para
expurgar pecadilhos pessoais.Tanto mais quando se trata de brasileiro,
que, mal aparece um escândalo de corrupção com dinheiro público, vai
logo culpando toda a >

Há três >

É projeção patológica do erro.O sujeito que
não admite que é cego e projeta sua própria cegueira nos
outros.Compreensível, uma vez que é difícil dar uma guinada de cento e
oitenta graus em toda uma história de vida.Mudar de opinião depois de
certo tempo e de certa idade é quase como mudar de opção sexual.Um
negócio deveras impossível.Mas como política não tem a ver(ou quase não
tem-ou não deveria ter) com hormônios ou gostos peculiares e
instintivos, pode-se sim mudar de idéia sem alterar os seus ideais. O
vira folha que, no caso de políticos, é um pária aceito com
desconfiança, na vida pessoal pode ser mais meritoso, uma vez
que tenha sido enganado e traído pelos próprios representantes
de seus ideais.Trocam-se os atores, ficam os ideais, ora esta.E você
não será defenestrado como cafajeste sem opinião, meu caro
teimoso.Antes, será recebido de braços abertos(por mim, pelo
menos.Serve?) como alguém que teve suficiente honestidade moral e
intelectual para admitir que errou e que mudou de idéia, mas não de
valores.

O problema é que às vezes este processo de metamorfose demora, e
demora tanto que nas eleições mais próximas, o teimoso é capaz de votar
de novo nas mesmas aberrações que elegeu, por pura birra esquizofrência
de projeção de erro e cegueira acumulada.Daí então lá se vão mais quatro
anos de porcaria, graças à arrogância do sujeito até inteligente que é
capaz de sacrificar milhões de pessoas apenas por não admitir que
cometeu uma burrice.

Reza a bíblia que os justos sempre pagam pelos pecadores.No Brasil, a
coisa é mais grave:justos e pecadores pagam juntos pelos pecados de
todo o mundo, principalmente dos justos que, por ignorância moral e
intelectual , se fazem de pecadores, pensando que são justos, consciente
e inconscientemente.Mais que política,uma verdadeira suruba teológica
este país.

  

2005-10-13 22:25:00

       
  

Festa

Celebremos o tempo perdido
o hiato lânguido que nos alivia  da tentativa
Celebremos a fuga que nos indica
o caminho alentador ao regresso uterino
Celebremos o nada que nos consola de quase tudo:
sono infértil que fertiliza o sonho
 
Celebremos a dor que nos desvia da inconsciência
cicatriz mal curada que nos desconsola
banhando de fel nossa placenta protetora
Celebremos a mágoa que revigora nossa queda
e nos torna aptos a desmoronar dignamente
Celebremos cada lágrima alcalina que salga nosso sorriso estéril
 
Celebremos a pausa de um prazer em perspectiva
ilusão palpável que nos torna entretidos
o suficiente para cultivarmos nossa prudência
 
Celebremos o esgarçamento da verdade
o corte transversal do fato
a apologia edificante de uma mentira necessária
 
Celebremos quem nos oprime
aquele que nos torna menos afeitos
ao nosso mesmo caráter opressor
Celebremos a injustiça que nos redime
de nossa defaçatez entranhada
 
Celebremos nossa estupidez estratificada
que nos cura da pretensão de legibilidade
Celebremos o avesso
que desanuvia o tédio de nosso reflexo 
 
Celebremos de olhos fechados nossa espiral descendente
nossa cegueira inexorável que nos descansa da revelação:
o contrário de uma imagem distorcida que corresponderá
a outro fim sem princípio definido
 
E antes do descanso, celebremos o cansaço
Celebremos sobretudo o peso insustentável
de nosso corpo em movimento
O mesmo que nos sustenta e nos mantém de pé
Celebremos pois este paradoxo de permanência.

  

2005-10-09 03:50:00

       
  

A voz do diabo

O mal do diabo é que ele é incapaz
de amar.Não consegue gostar de ninguém.Nem um tiquinho que seja.Sua
incapacidade de sentir algo por alguém é que o torna presa de sua
própria crueldade.Em suma, pode-se depreender desta lenda que a origem
de todo o mal é a ignorância.Quer seja ela sentimental, moral,
intelectual ou ética.Através da ignorância,uma pessoa está sujeita a
se tornar um espírito de porco, quase tão feio quanto o diabo.

A personificação individual do capeta já é
malcheirosa, que dirá de um povo inteiro.E bem sabemos(ao menos eu sei)
que toda aglomeração cheira à mediocridade, condomínio preferencial
do cramulhão.Por isto meu medo de decisões populares.Não, não é nada
contra a democracia, dos males o menor, como já dizia Churchill.Mas
creio que votações em membros de executivo e legislativo já são mais que
suficientes para suprir meu desejo de consulta popular.Referendos para
este ou aquele outro tema em particular sempre me cheiram à enxofre
populista:o mal personificado de uns tantos políticos sapientes em sua
ignorância moral calculada somado à burrice endêmica e coletiva do
populacho.Desde quando cidadãos comuns são aptos a decidirem se comércio
de armas deve ou não ser proibido?Desde quando pessoas comuns e em
sua maioria mal  informadas são aptas a decidirem pela
liberação ou não de drogas ou qualquer outra coisa do tipo? Certas
decisões devem se circunscrever a alguns especialistas e jamais serem
mote de voto popular.Já imaginaram se submetem todas as decisões
políticas ao público? Não haveria reforma previdenciária, a jornada de
trabalho seria de duas horas mensais e o país(qualquer país) iria à
bancarrota.Isto só para ficar em dois exemplinhos de ordem
econômica.Desnecessário dizer que em um país como o Brasil, com oitenta
por cento de analfabetos funcionais, a coisa se complicaria ainda
mais.Desnecessário, mas digo assim mesmo, só para lembrar.

Não adianta, Voltaire estava mesmo certo:o povo
precisa de uma canga.Mesmo em países mais civilizados, a constante de
uma população é o senso comum, que é meio caminho andado para a
mediocridadae, para o mal, pai e mãe de todas as formas de ignorância,e
filha desta mesma união incestuosa.Tomem a Alemanha, país cujo histórico
de filosofia e música é superior a todos os demais.Pois bem, qual o
maior legado histórico da Alemanha no século vinte?O nazismo.Culpa de
quem? Do povão, que aplaudiu Hitler e seus asseclas.

Ah sim, sim, o nazismo foi autocrático, mas justamente porque o povo
quis assim.Eles que escolheram a canga errada, ora pois.Há que se ter um
mínimo de bom senso(bom senso, não senso comum) e regra para escolher a
canga certa.Por isto a idéia- se não genial, paliativa- de democracia
representativa, em que votamos em quem nos irá guiar.A idéia
de chefia de estado não é agradável, eu sei, mas esta é
necessária justamente à manutenção de uma certa liberdade consentida,
uma vez que liberdade escancarada se transforma em avacalhação, para
conceituar eufemisticamente. E há que se escolher estes chefes
de estado,, há que se formatar o estado em si, ainda que
seja através de um voto por aproximação
instintiva.Basicamente, há que se escolher o governo, cujos assessores,
ministros e técnicos farão algumas escolhas mais acertadas por
nós, sobre assuntos os quais não somos suficientemente informados.A
possibilidade de erro ao votar em um comando de estado é
enorme, e erramos continuamente, mas pelo menos não corremos o risco de
sermos diretamente governados pelo povão, ou pelo diabo, como
preferirem, através de referendos ou quaisquer outros instrumentos de
absoluta e nefasta soberania popular.

2005-10-04 20:47:00

       
  

Mesquinharia virtuosa; corrupção lícita

Que dizer de um sujeito de má índole
que de uma maneira tortuosa e até mesmo nefasta caminhou o caminho da
virtude? Como tortuosa é esta frase, tortuosa será esta crônica, porque
munida de intenções subliminares do autor.Afinal, não é mesmo o todo
poderoso que diz escrever certo por linhas tortas? Pois cá estou a
seguir os passos divinos.

Mas enfim,o sujeito de má índole em questão é o
tal juiz ladrão de futebol que de maneira torpe foi comprado para
manipular resultados de partidas de futebol.O vício a que aludi é a
corrupção.A virtude é o descrédito do futebol como instituição.Claro que
uma virtude mesquinha, uma vez que esta atende aos gostos subjetivos
deste autor.Tenho pela cultura futebolística o mais cultivado e esmerado
asco,constituindo esta uma espécie de ícone da imbecilidade
nacional;uma excrescência de comportamento que rouba a cena de outros
aspectos infinitamente mais relevantes do cenário cultural
brasileiro.Daí minha satisfação em ver qualquer ente nocivo, qualquer
elemento desestabilizador que possa conspurcar o tal esportezinho
infame.

Imaginem um Brasil sem futebol.O paraíso que seria um
país sem comentaristas apalermados que discutem uma partida como se
fosse a guerra do Iraque, sem jogadores debilóides que não sabem
concatenar uma frase à outra, sem torcedores que trocam uma noite de
sexo por uma final de copa do mundo;imaginem um país sem esta
nauseabunda cultura futebolística que imbeciliza uma nação inteira…

Como diz o adágio popular, há males que vêm para bem,
e neste caso específico do juiz ladrão,o mal foi, vejam só, a
corrupção, velha conhecida dos brasileiros, a dar um pequeno passo no
rumo virtuoso do fim do torpe futebol.

Ah, não tenho ilusões tão desmesuradas e sei que o
esporte maldito continuará, apesar dos tropeços(acertados e nobres,
diga-se) de seus dirigentes.Mas ainda que nada acresente o fato da
arbitragem corrupta em prol do meu nobre sentimento de ojeriza pelo
futebol,não deixa de me acometer um certo prazer mórbido, mesquinho
mesmo, admito, em ver ludibriados os torcedores apalermados em sua
devoção passional a esta bobagem trágica que é o futebol.

Não consigo deixar de nutrir uma simpatia quase que
diabólica pelos tais cartolas que manobram resultados em benefício
próprio;mais ainda por juízes que trapeaceiam em partidas. São criaturas
que, inconscientemente, contribuem para o bem , agindo mal.Uma
contradição miraculosa, mais epifânica que o famoso dito de maquiavel, o
tal ”fins que justificam os meios.”Pois o Principe ideal de maquiavel
tinha consciência destes meios;já os cartolas corruptos são meros
párias que , através de sua desonestidade, contribuem para o beatítico
fim do futebol.A corrupção no futebol é, a meu ver, a única lícita e
perdoada.Tenho admiração por qualquer ser que contribua para a derrocada
do futebol, seja de que modo for.

Na minha tenra infância,cheguei a querer ser super herói de história
em quadrinhos.Por curvas tortuosas , este juiz corrupto recuperou minha
infância utópica, me devolveu o desejo de heroísmo perdido.Quando
crescer, quero ser juiz ladrão de futebol e acabar com este esporte
pernicioso.

  

2005-09-30 13:14:00

       
  

Retrato

Esboço o desenho da tua ausência.
Tua distância é minha companhia solene e insidiosa.
Ainda sobram os matizes da tua lembrança idealizada
mas o rascunho do contorno do teu corpo já se perde
na escritura imemorializada composta a sangue e mágoa.
 
Tua presença imaterializada se escreve a seco
como secos os olhos que já não vêem
como ressequidas as mãos que já não tocam
apenas percebem a lenta composição do esquecimento
 
Fuga sem cor tons esmaecidos
quase nada sobre tela em branco
apenas uma mancha plácida-
sujeira indelével do projeto de uma obra sonhada
sem moldura, sem acabamento, sem começo, sem fim
apenas um projeto
 
Por isto mesmo, eterno.