2005-09-24 15:03:00

       
  

Menos verdade, por favor

Todos buscam e perseguem a verdade,
ou pelo menos fingem que.Psicanalistas, religiosos, filósofos,videntes,
juízes de futebol, juristas(estes nem tanto).Com maior ou menor
intensidade, a busca da verdade chegaria a ser tediosa, não fosse nociva
por vezes.Algumas revelações e epifanias deveriam ficar debaixo do
tapete mesmo.Uma verdade desagradável não tem muita serventia a não
ser desagradar de fato.Não faço aqui apologia da cegueira ou da
imbecilidade, estados sólidos da não aspiração à verdade, mas digamos
que algumas informações factuais são mais que desnecessárias, dependendo
do contexto.

Verdades desagradáveis como as milhares de cartas e
revelações públicas da vida sexual e amorosa de Jean Paul Sartre e
Simone de Beauvoir, que constrangeram dezenas de amantes usados ad
nauseum para satisfação don juanística do ávido casal
existencialista.Ah, a verdade factual da vida comezinha de filósofos,
poetas e artistas em geral é sempre decepcionante.O mundo das idéias
abstratas, ainda que sejam idéias realistas, é sempre mais fascinante
que a verdade bruta dos fatos, justamente porque uma verdade concebida
se apóia no etéreo, no imaterial.Uma verdade palpável geralmenrte é
pegajosa e malcheirosa.

Alguma hipocrisia é mais que necessária à manutenção
de uma sociedade salutar, do micro ao macro.Traições conjugais, por
exemplo, são quase sempre inevitáveis em determinadas ocasiões.Uma vida
inteira de fidelidade é patológica.A única fidelidade possível é a
fidelidade aos próprios instintos.Sim, sim, às românticas leitoras de
‘’Sabrina’’, já respondo que de fato o amor é uma relação patológica em
si.Mas falo de instintos, e estes são, em maior ou menor grau,
irrefreáveis, mas controláveis socialmente.E este controle implica um
certo grau de mentira tácita, participativa, partilhada por um
casal.Contar ao cônjuge que desejou ou mesmo que tirou uma casquinha
física ou metafísica do objeto excuso de desejo é uma terrível falta de
educação.Pior ainda quando praticados em nome de alguma filosofia, como
fizeram os famigerados Jean Paul e Simone.

Bem, já repararam que não falo aqui de verdades
superiores, transcedentais.Estas são de ordem mais esquizofrênica, do
tipo religiosa.A verdade comezinha é a que se pode tocar.E eis o
ponto:suponhamos que você veja um montículo de cocô na rua.Você percebe
pelo aspecto, pelo cheiro, que é cocô.Mas você não apalpa o cocô para
ter uma prova empírica da existência do dito cujo.Assim com certas
verdades factuais.Pode-se até pressentir algumas delas, mas pode-se
circunscrever o nível de necessidade de aferição desta verdade e não
entrar muito no seu mérito mais profundo.Não é de bom tom, nem mesmo
agradável buscar detalhes de uma traição, assim como não se é adequado
investigar as origens do fracasso ou do malcaratismo de alguém.Alguns
problemas irreversíveis são mais afeitos à paliativos, a remédios que
atacam as consequências, não as origens.

Por isto a psicanálise é um tratamento sofisticado
para verdades comezinhas;por isto a psicanálise não funciona direito.A
mistura entre absoluto e factual sempre soará meio esquisita.Freud foi
um grande literato e pensador, mas talvez tenha sido um cientista meio
desnecessário.Suas verdades reveladas já eram mais ou menos deduzidas.Há
algo de podre em verdades impudicas do inconsciente humano que talvez
fosse melhor ser deixado por lá mesmo, apodrecendo nos grotões.Pelo
menos enquanto a coisa não cheire mal a ponto de perturbar os
vizinhos.

Eu, cá por mim, convivo bem com minhas patologias ,que são suaves e
controláveis socialmente.Já me bastam de descobertas.Prefiro certos
confortos e certos prazeres a certas revelações.Um segredo sabiamente
escondido por vezes pode ser bem melhor aproveitado que uma verdade
manifesta.E geralmente o é.

  

2005-09-19 21:57:00

       
  

Celebração do espelhinho de segunda

Venerar algo ou alguém, por mais
venerável que seja o dito cujo ou a coisa, é coisa esquisita;espécie de
narcisimo contrariado e reprojetado, vaidade desfocada.O sujeito que não
tem nenhum talento, nenhuma habilidade especial, nenhum mérito mais
diferenciado, venera.Invejar é mais saudável e mais afeito ao espírito
humano.Cobiçar com plena mesquinharia as virtudes alheias é mais salutar
que babar diante do próximo, a meu ver.

Por mórbida estranheza , nunca veneraram tanto quanto
agora.Em época em que não há quase ninguém(quase?) venerável, nunca
proliferaram tantos ídolos.Já ouviram, por exemplo, falar de uma tal de
Paris Hilton? Vejam o curriculum vitae da moça:filha de alguém muito
rico, feiosa, nariguda, não sabe atuar, não sabe falar, não canta, não
dança, se veste mal,se expressa mal e fez uma fitinha de sacanagem
caseira com o namorado cafajeste.É idolatrada nos Estados Unidos por
adolescentes e esteve no Brasil, onde foi o foco da atenção da mídia.Que
diabos esta criatura fez- por misericórdia, me expliquem- para fazer
sucesso?

Não é meu interesse chutar cachorro morto mas me
assusta a idolatria desvairada a quem nada fez e a quem nada é.Se ao
menos as pessoas idolatrassem pessoas que tivessem um tiquinho de
talento, ainda que mal vocacionado, vá lá.Mas idolatrar o nada em forma
de gente?Desfilam diariamente fenômenos do tipo Big Brother em que
pessoas se tornam célebres por ..serem célebres.Assim a vida midiática
de costumes e adereços de nossos tempos modernos:um pleonasmo debilmente
surreal.

Bem, vamos à tese:os medíocres parecem ter descoberto
a mediocridade refletida na mediocridade de outrem, compreendem?Em vez
de enaltecerem quem lhes seria superior, resolveram adotar a
mediocridade como elemento benemérito, digno de veneração.Isto explica
muita coisa ou quase tudo em nossos tempos melancólicos, desde o sucesso
de Paris Hilton, passando pelo fenômeno dos Big Brothers até à eleição
de lula.

Eventualmente, a coisa tende a gerar certas
extravagâncias.Pessoas medíocres que antes se moldavam em quem lhes era
superior agora se moldam em quem lhes é igual, o que torna tudo mais
fácil e palatável para eles, fenômeno que gera ao mesmo
tempo um exército de imbecis acontentados e rotundamente
apalermados com a própria felicidade vazia.A vagabundinha da escola vai
se inspirar na própria vagabundagem projetada em Paris Hilton. E quem
sabe resolve fazer um videozinho de furunfação como a ídola
platinada?Quem sabe também algum operário padrão deste que fala ‘’nós
vai’’ resolve salvar o país e se candidatar a presidente da
repúbilca(alguma sensação de déja vu por aí?…)?

Meu libelo é pelos que não são medíocres, ou pelo
menos por aqueles que tentam não ser, ou mesmo pelos que são, mas
reconhecem que a mediocridade não tem valor e não deve ser enaltecida-o
que é, por sua vez, um gesto nobre que indica a perda da mediocridade
até.Claro que os não medíocres são minoria, mas democracias não estão
tão na moda hoje em dia?Defesa de minorias não é o supra sumo das
práticas politicamente corretas?Então defendo o direito dos não
mediocres se expressarem, ainda que a multidão de nulidades os
apredreje, e escarneçam de suas virtudes morais, intelectuais e
artísticas, que os defenestrem por não serem medíocres.

Mas, uma vez refreados meus impulsos revolucionários, começo a
suspeitar que as diversas minorias de diversas especificidades de
medíocres configuram a maioria esmagadora daquilo que se chama
democracia.E, eureka, descubro:de uma maneira torta, os medíocres são
espertos.Nefastamente espertos.

2005-09-14 21:07:00

       
  

Autópsia de um sobrevivo

Parcelo minha morte em prestações a longo prazo
suicídio decantado cotidianamente balanceado
morte que se conduz em cada renovação preterida
morte fragmentada reordenada em perspectiva cubista
 
Brotará deste ajuntamento desvairado um feto renascido
úmido da placenta de um corpo recomposto em ângulos retorcidos
que servirá de alimento inesgotável à memória do que não fui
saciando a fome dos que planejam esboços sólidos de corpos esquartejados
 
Minha morte se produz ontem, quando decido continuar
Meu corpo em movimento é adubo fértil de colheitas vindouras
que revelarão em horizonte promissor
a reedificação de uma vida fragmentada
redimida em negociações excusas
entre minha sombra e meu cadáver duvidoso
 
Morro vivo ressuscito ontem hoje amanhã
Meu tempo é sempre
Ou nunca, se preferirem
 
O cadafalso é que me ergue na descida
onde finalmente sorri minha autópsia viva e pulsante.

  

2005-09-09 15:54:00

       
  

De mitos, cegos, carrascos, gigantes e anões

Lula e Severino, os dois nomes de
maior poder hoje no país têm lá suas semelhanças indeléveis;simplórios,
espertos, prosaicos, ambos com cara de povo, no sentido mais
iconográfico do termo.Ambos circunstancialmente enredados em denúncias
de corrupção.Severino já está no cadafalso por uma propina;Lula está
sendo poupado por ter comandado-sem saber, dizem os tolerantes de
coração-o maior saque ao estado da história da república.

Aqui fica registrado o meu protesto pela 
injustiça contra Severino.Se o negócio é perdoar, fazer ouvidos
moucos, porque só ele leva na cabeça enquanto Lula posa de autista
inocente?E respondo: simples.Já dizia o grande ídolo das esquerdas
Stálin que o assassinato de um só é uma tragédia, já o assassinato de
milhões é só estatística.A coisa funciona assim também com
roubo.Severino vai para a forca por ter roubado uma galinha
enquanto o choque com a dimensão da extorsão do governo Lula é tão
avassalador que uma espécie de catarse paralisa qualquer movimento de
degola ao blindado presidente.

Gente precisa de mitos, de heróis, senão não vive
,apenas sobrevive.E mitificar é fácil.Já desmitificar é a coisa mais
dolorosa que pode haver.Este é o verdadeiro significado da blindagem do
presidente.Custa a acreditar na ignomínia comprovada de quem outrora
simbolizou as esperanças de todo um país.Certo que só um cego não
desconfiaria de imediato de todo o processo de mitificação do nosso Luis
Inácio.Mas o fato é que este é um país de cegueira atávica e
inarredável.O Brasil é um país de evasivas, de fuga de contextos.Um país
que pára durante um mês inteiro para assistir a uma copa do mundo de
futebol não tem nenhum pudor de parar quatro anos para assistir em
estado catatônico o desfile de um mito toscamente fabricado.E ainda tem a
desfaçatez moral de se perguntar Hamletianamente se de fato valeu a
pena votar no dito cujo.

Não adianta.Seria oportuno dizer que o Brasil
precisaria de um divã;um povo apalermado, hipnotizado por um presidente
que se finge de autista;mas seria muita psicanálise para um primarismo
de coronelismo nordestino(ainda que seja coronelismo de sindicato).O que
este país precisa mesmo é de surra de rabo de tatu, bem aos moldes do
mediavalismo dos confins do sertão do qual Lula finge se identifcar.

É preciso arrancar a fórceps uma ilusão entranhada na
percepção dos brasileiros.Impressionante que um país com mais de
quinhentos anos ainda acredite em salvador da pátria;que ainda acredite
em conto de fadas político.Mas quem se habilitaria a ser o carrasco
epifânico e necessário a dar as chibatadas no couro dos
tupiniquins?Aqui, todos temos tendência para escravos, não para
feitores.

Sim , porque este estado de apalermamento profundo e voluntário só se
arranca na cacetada mesmo.Não há estimulante que faça o gigante se
levantar e cessar com esta coisa de se deitar eternamente em berço
esplêndido.Ainda se fosse esplêndido, vá lá…O duro mesmo é perceber
que quem embala o berço do gigante é um anão calçado de salto carrapeta
para esconder a estatura ínfima.Mas o gigante acredita.Claro, ele não
olha para baixo.Só sente a verdade dos fatos quando se espatifa no chão.

  

2005-09-05 01:44:00

       
  

Desconstruindo a desconstrução

Que teoria do caos que nada.O mundo é
certinho, ordenadinho,redondinho, quase lógico mesmo.Tudo é de um
elementarismo primário.Se você nasce, vive , morre e pensa, então há uma
certa ordem intrínseca a todo este processo, não? Tenho dó moral e
intelectual dos pobres coitados que acreditam pura e simplesmente no
acaso.Nasceram, vivem e pensam por acaso, pobrezinhos.Não seria de todo
mal que os que não acreditam em acaso acreditassem piamente que os
que acreditam são pura e simplesmente obra de um descuido mesmo, de uma
irrelevância atemporal sem planejamento.Não seria de todo mal, mas seria
falso e um tantinho cruel.E todos nós temos bom coração, claro, e
toleramos, não por acaso, os desatinos intelectualóides alheios.

Mas o fato é que há ordem em tudo.E não adianta vir
com argumentos desconstrutivistas, porque o próprio desconstrutivismo
brotou de um ordenamento lógico do pensamento, o que desconstrói a
própria idéia de desconstrução, ora bolas.Ah, longe de mim querer
desmerecer um certo relativismo de valores morais, éticos , estruturais
mesmo.Isto tudo teve lá sua valia no século passado.Mas, caríssimos,
todo o método de relativização e desconstrução pressupõe, ainda que
implicitamente, a construção de algo no lugar, nem que seja o avesso do
que tenha sido desconstruído ou mesmo a construção de um vazio, de coisa
nenhuma.Sim sim senhores, a mais elaborada construção é aquela que
propõe o nada absoluto como equação básica da vida, aquela que prova que
eu, você e tantos outros não existimos, que somos esboços do que não
viria ou não virá a ser.A moda, aliás, nas últimas décadas é tentar
provar isto mesmo, que viver é um passeio metafísico, sem a meta e sem o
físico.A questão que refuta tudo isto é que tentar provar que tudo é
etéreo e nulo é em si uma tentativa de ordenar, >

Assim em tudo.Filosofia, arte , ética.Toda tentativa
de iconoclastia denota a edificação de novos ídolos, nem que seja o
ídolo da devoção ao acaso.Não sobrevivemos sem deuses, senhores.A
totemização da própria sombra é destino fatal de cada um de nós.Nos
resta a opção do bom senso de edificarmos tótens palatáveis , úteis e
agradáveis.

Vamos à praxis da coisa por uma maneira enviesada
para não me chamarem de acadêmico empedernido e janotinha:vejam que há
um espíririto moral e ético de ordenamento até na atitude
canalha.Existem organizações criminosas que se comportam segundo rígidas
normas morais que fariam corar os mais probos juízes de direito.Regra
para matar, regra para trair, regra para torturar…tudo que não possa
ferir a honra o respeito das gangues em questão.Disse a máfia, mas
pode-se observar estas mesmas condutas morais em graus diferentes nas
mais diferenciadas tribos de criminosos.Pois bem, se há uma tentativa de
ordenação moral até mesmo em criminosos, que dirão aqueles que dizem
ser tudo obra do acaso, onde residirá o argumento dos apologetas da
estética da coisa nenhuma?

Existe uma matemática intrínseca reveladora da engrenagem humana, sub
humana e sobre humana.Embora tenha um palpite,sei lá eu se esta
matemática é boa ou perversa.E nem me interessa muito saber.Até porque
fui reprovado em matemática na fase dos meus cueiros.Estes assuntos só
me interessam de longe, portanto.Minha desconfiança mesmo é de que
Descartes, de uma maneira meio torta, no fundo tenha razão:de que tudo
se resume à razão e método, ainda que este método não seja
necessariamente cartesiano…

2005-08-31 22:53:00

       
  

Prece

 

Tu que te deleitaste em tortura redentora
que permeaste tua ascese em irônica derrocada
fincaste os braços em abraço megalômano
naqueles teus algozes cujo ódio respondeste
com a vingança do teu perdão calculado
 
Tu que edificaste o mais belo projeto de fracasso
ergueste um monumento ao sangue derramado dos inocentes
e ao castigo afável perpetrado aos teus seguidores
Tu que arrancaste júbilo de tua dor projetada pela história
haverá de sorrir de cada ego intumescido pelas razões lineares

Teu legado é nossa rejeição à obviedade dos instintos
nosso apego incontido ao masoquismo que nos salva
a complacência sensual ao avesso e à mácula

Tua oferta magnânima é nossa dor incrustada de cada dia
nossa antropofagia esquizofrênica de teu sangue tua carne tua palavra
nossa tentativa melancólica de refutação ao prazer comum

Abutres redimidos nos alimentamos de tua morte
de tua palavra crucificada
do teu sangue coagulado em nossas entranhas

Teu corpo glorioso é repasto de teu rebanho antropófago
ávido pelo próprio abate reedificante

Por este alimento indigesto te agradecemos
Por este banquete dionisíaco
revelador de nosso sabor intrínseco

O gosto insuportável e irrefutável
De Tua de nossa carne em decomposição
continuamente recomposta em permanente ressurreição

Por esta orgia canônica em comunhão te agradecemos,senhor.

  

2005-08-27 03:22:00

       
  

Fel melífluo

Pobres daqueles que não sentem ou
nunca sentiram o desejo de vingança.Perdem um dos mais saborosos
prazeres humanos.A vingança, quando justa e calculada, planejada por
anos, é como um orgasmo tântrico, projetado ao infinito.A injustiça
cometida primeiro lhe confere um sentimento de santidade, como que uma
canonização de sua personalidade ofendida, um sentimento de êxtase
estratificado.A raiva que se acumula, o sentimento de perda indevida que
se sobrelevará contra o ofensor;sentimento este que se entranha nos
póros e que desabrocha em felicidade depois da justiça consumada, da
vingança perpetrada.

Maléfico isto ?Qual nada, todos os santos têm este
sentimento de vingança arraigado.Ao darem a outra face, sabem que a
cólera divina mais cedo ou mais tarde cairá sobre a cabeça dos
malfeitores.Cristo, quando crucificado, sabia que seus algozes pagariam o
preço devido em seu devido tempo.Mesmo o perdão ao arrependido é a
vingança da verdade, da humilhação àquele que , soberbamente, caiu no
erro e depois se ajoelha  percebendo seu engano, clamando por
misericórdia.Querem vingança mais saborosa?E àqueles que insistem no
erro, o fogo eterno dos infernos.A punição ao agressor é vingança;o
perdão ao agressor é vingança maior ainda.Meus caros, a bondade, quanto
maior se parece, mais traz dentro de si um gérmem mórbido enrustido.É da
natureza humana.E da Divina também.

Nada mais redentor para a alma de um candidato
derrotado em ver a ruína moral e administrativa daquele que o
venceu.Nada mais saboroso que contemplar a reprovação escolar do
imbecil adolescente que, por sua beleza, ganhava o coração de suas
paixões platônicas de adolescência.Nada mais revigorante, ressuscitante
até, que ver, depois de anos,a mulher eternamente amada, descobrindo ,
depois de anos e erros amontoados, que você era o grande amor da vida
dela.Tudo isto, consciente ou inconscientemente, configura as várias
nuanças do sentimento sublime da vingança, muito achacado e menosprezado
pelos politicamente corretos e pobres de espírito.Você pode até receber
todo o prazer da vingança em tom blasé, mas um
sorrisinho suave, quase imperceptível, sempre estará estampado
em seus lábios…

Tenho cá para mim que a vingança, abaixo do amor, ou
melhor, unido a ele de forma subliminar , guia a história
humana.Sim, sim, o amor compreende a vingança sim senhores.O amor é
incondicional e se revela até nestas reviravoltas do destino.O amor que
está explícito no perdão também é vingança, pois perdão é amor, mas,
como já disse, perdão também é vingança, a vingança da razão e da
justiça.O amor também se configura no esquecimento, que é uma espécie de
perdão às avessas, que configura a vingança da indiferença.

Podemos inclusive nos vingar de nós próprios,
deixando de amar alguém que nos fez sofrer, mudando de ideologia,
trocando de partido, de visual, de vida, abandonando gostos que
julgávamos imutáveis em nós.Podemos nos achacar investindo contra aquilo
que pensávamos ser incrustado em nossas entranhas, nos violentar.Esta
mescla de dor e prazer em nos desviarmos de nós mesmos contribui para a
reinvenção de nossa própria personalidade, na destriuição de nosso eu e
na sua consequente reedificação.Nos vingamos de quem nos fere, inclusive
de nós mesmos, nosso piores agressores.

Amar, queridíssimos, também é se vingar.De tudo e de todos que
merecem a vingança, de todas as formas diretas, indiretas, sutis,
subliminares pela qual ela se observa.Amar é ser complacente às
injustiças sofridas e saborear o revés do tempo e das
circunstâncias.Amar de verdade é coisa de sadomasoquistas.

No mais, a vingança em si é sempre edificante.Pune  o agressor e
o reeduca através da mácula e redime a alma e sobretudo o ego do
vingador.Vingança, meus caros, não só é prazeirosa como também é
pedagógica, reveladora da alma humana e , sobretudo, a
mais lasciva, a mais sexual arma da justiça.Toda vingança é um
coito metafísico entre os atores  nela enredados.

Mas reparem:vingança é privilégio dos justos.Não confundam uma bela e
justa vingança com psicopatias e afins.O prazer pode até ser igual, mas
há que se considerar as causas.As causas precedem as intenções,
senhores.E as causas devem ser justas.Só pode se vingar quem tem motivo
para tal. Quem julgaria as causas?Ora, abram alas às consciências,
caríssimos…

  

2005-08-23 09:35:00

       
  

O oitavo pecado capital

Deveria haver no catecismo um oitavo
pecado capital a ser considerado:a chatice.Aporrinhar o próximo deveria
ser considerado ofensa grave aos preceitos cristãos.Vejam bem:a inveja,
a gula, a luxúria são pecadilhos de muito menor gravidade, porque não
se manifestam às claras.Pessoas têm receio de parecerem invejosas,
taradas ou gulosas.Mas a chatice é espontânea, visceral, manifesta,
escancaradamente manifesta, posto que o chato, a rigor, nunca tem
consciência da própria chatice.Talvez por isto mesmo haveria este
empecilho de inserir a chatice no índex católico:justamente o fato de o
chato não ter consciência do mal que faz.

Mas isto traz à baila um probleminha de ordem
teológica: um pecado só é de fato pecado quando o pecador tem
consciência do mal que faz ao semelhante? Ora, mas o mal feito, feito
está, independente da consciência ou não do malfeitor.Se um assassino é
amoral e não se vê perseguido por nenhuma culpa, isto não o reabilita
nem traz de volta à vida o assassinado.Como então o tal matador ganharia
o reino dos céus?Só porque o sujeito não tem escrúpulos morais e não
sabe que matar é errado?Ou seja, a inescrupulosidade, a ignorância moral
seria uma espécie de habeas corpus para o alma penada que se veria
livre da pena?

Assim com o chato.Sua chatice incomoda e independe de
sua ilusão pessoal de que não é chato.O problema é que a chatice é
menos definível que um mal como o furto ou o assassinato.A chatice é
abstrata e subjetiva e mais afeita às leis da física e da
antropologia(tudo é relativo, lembram?).Definir e objetivar a chatice é
tarefa difícil, sendo que a dita se aplica mais ao fígado que ao
cérebro.A chatice de um depende e varia de acordo com a personalidade do
que está ao lado do chato.Portanto, seria difícil julgar taxativamente o
que poderia >

O mais grave, e infelizmente menos demonstrável em
palavras, é o chato metafísico;aquele que incomoda a sua alma, as suas
entranhas.Que sofisma sempre sem senso de humor, que escreve e diz
verdades absolutas sem nenhum charme(verdade sem estilo é chata), que
traveste clichês com aparência barroca, que intelectualiza futebol, que
torna enfadonhos sentimentos nobres como o amor e a amizade.Toda esta
chatice é perfeitamente demonstrável em palavras ,mas complicada de se
definir a olho nu.O chato metafísico é uma entidade abstrata e
escorregadia.Só mesmo uma deidade como o Deus católico para julgá-lo
pessoalmente.Aos mortais resta o direito de, diante do chato metafísico ,
apenas ensaiar um muxoxo de preguiça e enfado.

Mas podemos ajudar um pouquinho a misericórdia divina
nesta árdua tarefa de identificação dos chatos metafísicos.Há, por
exemplo, profissões que incitam a chatice metafísica.Disse há pouco do
incômodo de tornar enfadonhos sentimentos nobres.Esta é uma tarefa
afeita a pastores de determinadas igrejas,de líderes de escoteiros e
assistentes sociais que falam sempre com voz de diabetes, excessivamente
açucaradas, sobre amor e amizade.Toda vez que contemplo uma criatura
destas, tenho vontade de travar conhecimento com um advogado canalha.Mas
este último me lembra os sofistas sem senso de humor.Comentaristas de
futebol dispensam comentários sobre sua chatice intrínseca.E pior mesmo
que todos estes são os jornalistas que já optam desde o início pela
chatice como profissão:a verdade dos fatos, a verdade chatinha e
comezinha dos fatos…Ah, e os acadêmicos que, ao contrário dos
jornalistas, adoram rebuscar e adornar verborragicamente um buraco na
rua.

Em suma, identificáveis ou não, os chatos são os criminosos mais
pérfidos, porque têm sua atividade criminosa afeita aos padrões
sociais.A chatice se molda a todas as profissões, estilos de vida,
personalidades, padrões morais, éticos, filosóficos, etc.A chatice é uma
doença inescrutável e , por isto, inimputável.Para desconsolo de todos
os não chatos.Mais triste é que estes últimos mais e mais se tornam
minoria.

  

2005-08-13 00:32:00

       
  

Mesmos contrários

Há na saliva insípida uma gota de bile
extraviada do fluxo plácido da corrente sanguínea
extraviada do curso monótono da direção dos fatos
incrustada na dimensão subterrânea do sorriso complacente
 
Há no aceno parcimoniso um gesto autoritário embrionário
uma violência implícita nas mãos espalmadas em doação
Há na oferta uma agressão semi revelada
uma semi descoberta do ego intumescido
 
Há no gesto heróico um coito beatífico sutilmente obsceno
consentido entre redentores e redimidos
 
Mas também na queda há uma reedificação à espreita
Na morte uma esperança cega e certa
da construção objetiva da falta de sentido
Na dor  a expectativa do alívio consequente
e da descoberta epifânica do prazer pelo seu avesso
Há sobretudo no soco a confluência de duas peles que se tocam
 
Há no contraditório seu avesso cartesiano
a certeza da dúvida tácita e generosa
Há no momento seguinte
o questionamento acolhedor do instante anterior
 
Há em cada coisa sua inerente e ansiada anulação
A construção metódica dos opostos sobrepostos
formulando as suspeitas certezas alentadoras
A sombra do reflexo do avesso tornando-se
sua igual pelo reverso das posições
 
Eterna irmandade incestuosa entre Caim e Abel
Generosidade insidiosa do assassinato consentido
Fotografia estratificada em negativo
carcomida e novamente revelada e desvelada pelo tempo
 
Há neste permanente regurgitar de coisas
um apetite voraz pelo próprio vômito
 
Este prazer mórbido de se saber amálgama
entre tudo e coisa nenhuma
substância vária e contínua  dos mesmíssimos contrários
e suas sucessivas camadas subliminares.

  

2005-08-09 15:05:00

       
  

Depois do fim

Aspirantes a crédulos perguntam se
existiria vida após a morte, para ver se amenizam o fim.Se houver,
espero que seja breve e não eterna.A idéia de eternidade me assusta mais
que a idéia de finitude.Todas as opções pressupostamente alentadoras de
paraíso de todas as religiões me soam no mínimo tediosas.Imagino
com uma certa preguiça a versão do paraíso católico, por exemplo.Um
monte de beatos sem sexo, sem direito a poder falar mal dos melhores
amigos, sem nenhuma espécie de competição, e, sobretudo, sem nenhum
alívio, sem nenhuma ínfima desgraça para atenuar o tédio perene de uma
estado de graça eterna.Ora, é preciso uma certo dissabor, um certo
descaminho para que sobrevenha um melhor degustar da felicidade.Até a
felicidade enjoa, se constante.Meu medo maior é me tornar eternamente
feliz.Já viram a cara das pessoas plenas de felicidade?Já tentaram
conversar com um felizardo perene e pleno?Será nisto que se convertem
todos os mortais no paraíso dos católicos?Cruz credo.

Melhorzinho mas machista é o paraíso dos
muçulmanos.Dezenas de virgens eternamente virgens, refeitas,
revirginadas pela graça de Alá ao bel prazer de cada um que merecer uma
boa vida pos mortem.Não daria muita trela para a virgindade,desde que
fossem bonitinhas as moças.Mas reparem:mesmo que sejam sessenta virgens,
uma eternidade com as mesmas meninas cansa.E também há problemas
estruturais graves neste paraíso islâmico .E exercerei aqui, se me
permitem, meu exercício de generosidade.Se há um paraíso 
machista que atende exclusivamente aos anseios masculinos, que será das
mulheres , coitadas?Haveriam as pobres de ir para o paraíso com a função
exclusiva de se tornarem eternas virgens servidoras, funcionárias
públicas , anjos beatíficos da furunfação?Ou teriam também o direito a
dezenas de servidores homens(também virgens?).E mais:que seria dos
pobres homossexuais forçados a diariamente extinguir a virgindade das
moças?Ou seja, um paraíso sexualizado como este implicaria sérios
problemas sociológicos, como se pode perceber.

Sou mais afeito à idéia cardecista de reencarnação
por uma simples razão:a perda da memória, a desmemória do que já se
passou.Você comete seus erros e acertos e depois ajusta as contas na
próxima vida sem lembrar de nadinha, desde o moleque que pisava no seu
pé na infância até a mais dolorosa rejeição amorosa.E ainda quem sabe
poderia na próxima encarnação se vingar inconscientemente do moleque e
da moça rejeitando esta e pisando no pé daquele.Bem, mas aí o assunto já
foge da justiça divina e entra em um terreno mais afeito a planos menos
beatíficos…Além do mais, a vingança só é agradável se consciente.

Mas o fato é que esta idéia da reencarnação me soa
muito capitalista, com direito a saldo positivo e negativo desta vida
que você pagaria na próxima.Sim, sim, sei que o espírio capitalista é o
que mais se molda à condição humana, mas , por Deus, esperaria mais da
condição ‘’Divina’’, ora esta…

Enfim, o problema de alguém como eu que duvida de tudo mas quereria
acreditar em qualquer coisa é este:não achar um modelo de paraíso, de
vida pós morte que se adapte às minhas idiossincrasias.Os paraísos
religiosos são todos construídos baseados em tradições culturais muito
específicas relativas a costumes e épocas precisas.Todos os
paraísos de todas as religiões são insuportavelmenhte
antropológicos.Quereria um que fosse absoluto e atendesse a todas as
minhas expectativas, que, por sua vez, não são imutáveis.Tenho o direito
de mudar de opinião, de gosto, de tudo.O defeito de todos estes
paraísos é uma certa imobilidade metafísica.Todos eles oferecem um
modelo estático de felicidade.A uma vidinha tediosamente beatífica e
eternamente feliz deste jeito, prefiro um fim de fato, uma boa morte
mesmo.As pessoas têm medo da não existência.Eu, preguiçoso que sou,
sinto mais tédio da existência, quanto mais de uma existência eterna.O
fato, senhores , é que tudo cansa.Mesmo um paraíso com dúzias de virgens
eternamente revirginadas.Tudo mais cedo ou mais tarde se torna
fastidioso.Tudo enjoa, até a felicidade eterna.