2005-01-17 01:05:00

       
  

Valores

Quanto vale um sorriso forçado, um aceno a uma
criatura detestável?Quanto vale um abraço em um parente chato ou um
tapinha nas costas de um patrão carrasco?Pouco ou muito? Todos nós já
nos vimos em um tipo de situação parecida, em que nos vendemos, ainda
que a baixos custos, em troca de alguma coisa.

Compra e venda não pressupõem apenas o uso específico
de dinheiro, que é apenas um símbolo, um bem artificialmente produzido
para representar o eterno escambo que é o relacionamento humano.Todos
vendem e compram alguma coisa, trocam algo em troca de outra coisa.Jogo
de interesses.Canalhice isto tudo?Sei lá.Mas é a natureza humana como
ela é.Não é por acaso que o capitalismo é o sistema que mais se parece
com a própria natureza humana, que mais se molda ao espírito de
competitividade inato em todas as pessoas.Prostituição é apenas a
manifestação mais crua e direta deste jogo de interesses.Menos hipócrita
talvez e por isto mesmo mais incômoda de se ver.

A prostituição nossa de cada dia se dá no
cotidiano, nos pequenos gestos de adulação, nos sorrisos complacentes,
nos apertos de mão obrigatórios.Todos somos mais ou menos
prostitutos.Mesmo em termos ditos nobres como a amizade, por
exemplo:aqui a prostituição implica uma troca de favores, de
cavalheirismo , de elogios e de gentilezas que provocam uma mútua
massagem de egos.Prostituição é apenas um nome canhestro dado a uma
prática comum que marca um dos pilares do relacionamento humano.

Querem um exemplo mais forte ainda? O amor.Sim, o
amor mesmo.Compra-se diariamente o amor do objeto amado(nome exato,
aliás) através das carícias , ternuras e afetos obrigatórios.Sei, parace
estranho falar em obrigação quando se fala em um sentimento puro.Mas
senhores, todos sabemos que um amor não vive sempre de êxtases e picos
orgásticos o tempo todo.O cotidiano mina paulatinamente qualquer tipo de
poesia.A construção de uma relação amorosa se dá por compras e
vendas(mais uma vez) de sorrisos , gestos , declarações, etc.Pode ser
uma obrigação deliciosa até certo ponto, mas ainda assim é uma obrigação
para que se mantenha o amor.

Não há ilusões quanto ao fato de que a humanidade é
um mercado.Mas isto não é de todo mal.Há valores interessantes também,
como a verdade(o que tento fazer aqui.Tento), a generosidade, a
gentileza, e, entre outros, o próprio amor também.Todo o aspecto
aparentemente politicamento incorreto do que digo não passa de um
aspecto terminológico.O que se pode fazer(e não há outra escolha) é
lidar com estes mesmos valores, tentando não inflingir as leis do
mercado.Poderiam ser chamadas de ética estas leis.Mas é aí é que a coisa
se confunde.Não há, a despeito de certas convenções, regras estritas
que regulem este mercado.Não há estado existente que possa regular as
ações e, por conseguinte,possa controlar o escambo dos valores
humanos.Tudo ou quase tudo é relativo neste mercado humano.A humanidade é
o verdadeiro sonho dos liberais, o paraíso do liberalismo, onde não há
estado mínimo, não há estado nenhum, onde as ações não necessariamente
valem o quanto pesam e todos são livres para tirarem o proveito e o
lucro que quiserem de todas as situações possíveis.Os valores se
confundem nesta selva de investidores que somos todos nós.Sim, nós
mesmos:investimos agressivamente , o tempo todo em nossos amores,
em nossas relações, em nossos filhos, em nossas amizades, em nossos
destinos.Não temos outra escolha.Viver é investir infinitamente.

Mas há , neste mercado selvagem, uma lei triste , quase abjeta, mas
indelével.Assim como no capitalismo, a vida humana tem perdedores e
vencedores.E todos sabemos que o número de perdedores no mercado(humano e
financeiro) é infinitamente maior.Para cada vitória, há um milhão de
fracassos.Mas esta lei talvez seja a única que não se molda exatamente
ao espírito capitalista em todas as suas nuanças.Explico:a vitória e a
derrota de que falo são metafóricas, dizem respeito a valores fixos
de bem estar.E é aqui que a coisa se complica novamente.Se os valores
são relativos, então vitórias e derrotas também são relativas,
dependendo do lucro que se obteve neste mercado que é a vida.Não deixa
de ser um consolo para aparentes perdedores, que talvez ganhem alguma
coisa no final das contas, ou de acordo com os valores, ganhem tudo
fracassando onde outros (também aparentemente) ganham.

Também não deixa de ser uma ironia que o mercado capitalista,tal como
ele é, sem este negócio de ‘’vida’’ no meio, só seja concreto porque se
baseia em um bem simbólico como o dinheiro. No mercado humano, não há
simbolismo possível:tudo é o que é, e nem sempre o que é aparenta ser
exatamente o que é.Complicado?Pois é, não basta estudar economia de
mercado para entrar no mercado de valores humanos…

  

2005-01-13 00:14:00

       
  

O teatro da curva

Há certas expressões que, pelo uso
exaustivo, apodrecem.Há outras ainda piores que são usadas
ostensivamente para tentar(em vão) mascarar a mediocridade e o vazio do
autor que as emprega.Querem um exemplo clássico?’’Condição
feminina’’.Querem uma pior ainda? ‘’Essência feminina’’.Já chegam a
feder estas duas, de tão podres.

 

Pois
pasmem que eu vou tentar escrever algo sobre a a condição(ai…)
feminina sem cair no ridículo e sem pedir perdão à Madam Beauvoir,
autora da expressão, cujo maior feito filosófico foi o de ter se casado
com seu bom marido Jean Paul Sartre.

 

Então lá vai:

 


algo de intrinsecamente cruel em uma mulher, sutilmente nefasto e que
apavora e seduz . Mulheres detém o poder sexual pleno sobre os homens, e
baseado nisto afiam suas garras e os fazem de joguetes em suas mãos.
Mulheres escolhem seus parceiros , até mesmo quando os homens pensam que
as escolhem. Há algo de ardiloso na maneira como nos apaixonamos por
elas, como se fôssemos presas fáceis e (falsamente) inconscientes deste
ardil feminino. Quem detém este poder sexual deveria , por conseguinte,
deter o poder sobre o mundo, mas aparentemente não é o que acontece.
Aparentemente, eu disse.

 

Não
se chega, nunca se chega ao fundo das intenções de uma mulher. O que se
vê é um eterno jogo de aparências, como se a sinuosidade, a curva fosse
a característica fundamental feminina. Reparem:o corpo feminino é
sinuoso, curvilínio. O orgasmo feminino nunca é direto e sempre passa
por caminhos tortuosos. A voz , os olhares, os gestos
geralmente não são taxativos ,parecendo sempre encobrir segundas,
terceiras e quartas intenções. Até quando elas não sabem o que querem ( e
geralmente não sabem), o conseguem por instinto. Não é à toa que
mulheres não confiam em mulheres. Elas são intrinsecamente solitárias e
têm aversão à comunidade, assim como os escorpiões. A vida em grupo é
mera caixa de espelhos para elas, de onde tiram proveito para conferir
suas múltiplas imagens e facetas projetadas em seus afetos. O outro é
sempre um meio de ressonância delas mesmas. Mulheres são inexoravelmente
únicas, sozinhas, e, por isto mesmo, trágicas.
Sim,
mulheres amam melhor, é claro. A solidão metafísica não impede que seus
sentimentos sejam mais aflorados que os dos homens. Mas elas também
odeiam melhor, desprezam melhor, pecam melhor e matam melhor. O ofício
feminino é o do teatro da curva. A teatralidade é o pilar que sustenta a
persona feminina, a máscara feminina, na tradução literal. Tudo na
vida, é, em primeira e última análise, representação. E mulheres
representam melhor seus papéis, extraem melhores matizes de desgosto, de
raiva, de paixão, de medo, de covardia, de coragem e, claro, de amor.

Mas
têm uma incompetência grave neste palco: não têm talento para a
comédia. São essencialmente e irrevogavelmente dramáticas. A ironia não é
o forte delas. Carregam naturalmente nas tintas, são todas medéias
tiranicamente
enlouquecidas (sem exceção) pelas suas fantasias de amor, de casamento,
de maternidade. Seus contos de fadas não são infantis, são disfarces
para suas tragédias gregas que arrastam tudo e todos em suas construções
de areia. Sim, tudo na vida é, em primeira instância, construção de
areia, mas a grande tragédia das moças é exatamente tomar por concreto
aquilo que desmorona com um sopro.
Em sua inegável superioridade de
sentimentos, de persuasão, de fineza intelectual, de sutileza, as
mulheres, no fundo e na superfície mesma, são ingênuas. E este, meus
caros, é o único ‘’fundo ‘’ a que se pode chegar, que se pode alcançar
em uma mulher:a sua trágica inocência, descoberta debaixo de sorrisos
cruéis e carícias maternas.
Mas ainda assim, ou por isto mesmo, as amamos

 

 

  

2005-01-09 19:54:00

       
  

Rebeldia por conta da freguesia

Nada mais constrangedoramente
patético e fora de contexto que o anacronismo, em todas as suas
variantes:não saber envelhecer, usos fora de época, deturpações de
contextos, enfim, deslocamentos temporais mal inseridos, mal enfiados
mesmo.

Querem um exemplo simples?O Rock.Tipo de música mais
voltada a um tipo de atitude que às suas virtudes musicais mesmo, o tal
Rock and Roll surgiu como um movimento musical de rebeldia, de
contestação ao status quo.Confesso que nunca fui muito com a cara da
coisa, mas até achava engraçadinhas algumas canções dos Beatles , dos
Rolling Stones e subgêneros(Confesso:já nasci velho), mas hoje em dia
não deixa de parecer no mínimo ridículo observar um Mick Jagger com mais
de sessenta anos requebrando no palco como se fosse um garotão rebelde
de vinte.Mas vejam só, não é só uma questão de idade do praticante.O
envelhecimento também é do próprio Rock, entendem?Como não achar
patético que jovens bandas que têm uma postura rebelde, agressiva,
alternativa(alternância a que, cara pálida?) sejam dóceis instrumentos
de fabricação de dinheiro para as gravadoras e ajam como bonecos na mão
delas?O pirecing colocado nos genitais para reforçar a agressividade, o
cabelo repicado para ressaltar o desmazelo, os ensaiados gestos obscenos
para ratificar a rebeldia contra o ‘’sistema’’, o qual eles próprios
alimentam, e do qual se alimentam.Ora , façam-me o favor…

O tal Rock morreu.Todo roqueiro hoje em dia me lembra
o Supla:infantil, ingênuo e filhinho de papai(ou mamãe, no
caso);roqueiros que se rebelam pelo prazer estético da rebeldia,porque
acham bonitinho se rebelar, mas no fim do mês querem ver quando
rendeu a bilheteria.O Rock, no caso, é um exemplo aleatório.Há também
toda uma atitude de rebeldia, geralmente importada dos anos sessenta que
é totalmente anacrônica, fora de contexto.O caráter alternativo de toda
uma geração foi assimilado pela cultura de massa e tranformado em
mainstream, em moda.Por isto a infestação dos hippies de shopping
centers, dos heavy metal que frequentam o macdonald’s e outras
aberrações do gênero.

A rebeldia dos anos sessenta podia ser
utópica,ingênua, mas ao menos era autêntica.Hoje, nesta nossa
melancólica era amorfa em que cada um quer apenas defender o seu, a
juventude, tonta pela falta de atalhos e referências, emburrecida pela
mediocridade vigente, adota a casca do que se chama(ou se chamava)
rebeldia.Não se rebelam contra nada, porque não sabem de nada.Acham
bonitinho xingar o Bush porque todos o xingam, mas não entendem patavina
de política externa, assim como acham bonitinho usar roupas de couro,
rasgadas, e argolas penduradas no nariz.É tudo de fora para dentro.É a
revolução do oco, do vazio.Enquanto pensam ser rebeldes, defendem
implicitamente os pilares do consumismo ligeiro, rápido.A rebeldia hoje é
uma griffe.

É uma característica básica de toda a juventude a de
ser idiota.É uma fase alegre da vida, bela, mas é imbecil mesmo.Tem lá
seus Rimbauds e Mozarts da vida, mas bem sabemos que são exceções.Não é
característica própria desta geração de fim/começo de milênio a
imbecilidade.Mas é uma coisa nova a compra do meio alternativo.A
alternância como o padrão de consumo é um dos paradoxos mais
tragicômicos da toda a história da humanidade.A impressão que se tem é
que um rebelde, um verdadeiro rebelde hoje deveria sair às ruas de
smoking e gel nos cabelos em passeata de um só, clamando por bons modos à
mesa.Seria também patético, mas ao menos seria mais autêntico e
original que os rebeldes alternativos hoje fabricados em massa em
Shopping Center.

 

  

2005-01-06 20:21:00

       
  

Da arte e da necessidade de falar mal

Tese repetida repetidas vezes que diz que falar mal é
fácil, que polemizar é fácil;basta soltar os cachorros e uns esgares de
odiozinhos e sorrisinhos irônicos e pronto:os holofotes se acendem e os
aplausos fáceis abundam.Me enchi de ouvir este tipo de
coisa.Difundida(com mais pobreza verbal, claro) por intelectuaizinhos
assépticos e ocos como José Wisnick, jornalistas cordeirinhos como Caio
Blinder(ex-‘’sparring’’ de Paulo Francis) e ratificada por gente com o
estofo moral de um Gugu Liberato.Bobagens tediosas como a que diz que há
que se recuperar os valores nacionais,o sentimento de grandeza de um
povo , de uma raça, ou de sei lá o que.Já não dou conta mais de ouvir
este tipo de coisa.Saturei.

Primeiramente, falar mal não é para qualquer
um.Requer talento, estilo e critério.Ofender é uma arte que envolve
sutileza, perspicácia no julgamento e muita ética.Não se sai falando até
da própria sombra como cão raivoso, só pelo bel prazer de mostrar a
linguinha para todo mundo.Isto é coisa de adolescente rebelde espinhento
com piercing no nariz e de senhoras histéricas com calores de
menopausa.Não, há que se escolher o alvo, que se ter a delicadeza de
arrombar somente o que ou quem merece ser esculhambado.Chutar cachorro
morto é covardia.E também não basta morder a canela de gente graúda.Tem
de saber envenenar com lentidão, de torturar com malemolência e
jeitinho, e depois dissecar o cadáver com calma e certa gentileza.Falar
mal não é fácil e não é coisa para amadores.

Fácil mesmo é o elogio, a apologia, mães da adulação,
do compromisso, do rabo preso, pilares da nossa cândida cultura
tupiniquim, que desde Gilbertro Freyre, tenta desmesuradamente adocicar
os matizes e sabores nacionais.O Brasil deveria ser um exemplo da mal
falação.Os podres são tão vastos que deveriam ser deletados pela língua
num contínuo infinito.A negação é o caminho primeiro para a purificação
da alma.Deveríamos dar o exemplo e fundar uma escola do mal falar, cujo
objetivo seria o de chutar os pés de barro de todas as
instituições.Polemizar não é só fazer gracinha, mas um exercício moral e
intelectual nobilíssimo.Os perdigotos de uma polêmica são os
culhões de um povo, de uma sociedade.Tenho horror a estes conceitos,
‘’povo’’, ‘’sociedade’’,e só acredito neles quando são auto negados.Aí
então quase me emociono ao descobrir que a única identidade coletiva só
pode aparecer através do contraste alimentado pela porrada metafórica,
pela iconoclastia, pela violência verbal que destrói os clichês, que
lapida a verdade.Ah, a verdade não existe?Então que não sobre nada, ora
pois.Que as únicas coisas remanescentes sejam sorrisinhos irônicos e
sarcásticos mesmo.Pelo menos assim ninguém se levará tão a sério.

Levar-se a sério é a causa primitiva de todos os
males.Todos, eu disse.Por isto tenho arrepios, engulhos quando ouço
alguém mencionar valores individuais ou coletivos.Me soa auto afirmação
de adolescente.Os valores, se existirem, surgem naturalmente, não
precisam ser berrados na esquina.Já os vícios agem sempre na surdina, e,
de uma maneira ou de outra, sempre prevalecem.Duvidam?Dêem uma
olhadinha na história da humanidade…

Por isto falar mal é um bem mais que necessário, mais
que urgente.Falar mal é um exercício de civilidade, de amor ao
próximo.Só se lava uma herança maldita cuspindo e pisando nela.Toda
sociedade que se preza deveria ter a grandeza da auto destruição.Assim ,
quem sabe, se contrói alguma coisa que preste depois de tudo que foi
destruído, de toda a lama deixada para trás.E se a coisa apodrecer de
novo?Pau em tudo novamente.Mas sempre com carinho , claro.E com todos de
mãos dadas, que somos cordatos e gentis.Ora, não estamos mais na
pré-história, embora às vezes tenhamos um sentimento nostálgico em
relação ao uso do tacape.

  

2004-12-23 16:56:00

       
  

Boas entradas e saídas

Não serei o primeiro nem o último a
macular a imagem de pureza natalina.Mas lá vai:Natal denota um
sentimento de tristeza, de melancolia funda e desagragadora.Sim,
desagregadora.Uma suposta época de fraternidade que se dá através da
exclusão.A apologia da célula familiar em detrimento do resto.Nada
contra a família, mas cada vez mais penso que prefiro os afetos de
escolha que os impostos;prefiro a família escolhida por mim mesmo, ainda
que esta não me escolha sempre.Não acredito em amor à humanidade
inteira, porque gosto de focalizar alguns aspectos particulares do que
me faz amar alguém.Prefiro o termo ‘’compaixão’’ que denota um
sentimento mais próximo do que se pode dizer ser fraternidade.Claro que
tudo isto passa longe do que vejo ser o tal ‘’espírito de natal’’.Não
vou aqui fazer diatribes contra o consumismo natalino, porque o ser
humano vive mesmo do consumo.Consumo de amor, de drogas(em todos os
sentidos), de roupas, de pessoas, etc.Mas bem que os publicitários
podiam ser mais sutis em seu ofício…

Todos são bons ou aparentemente bons no natal.Natal é
uma pose, da mesma maneira que é uma pose a figura de um Papai Noel
fruto da imaginação dos publicitários da Coca-Cola.Há algo de
visceralmente imposto, e portanto, falso no tal espírto natalino, como
se houvesse data marcada para bom comportamento.Os canalhas são
absolvidos, assim como os mortos tornam-se instantaneamente bons.E,
francamente, tenho certa antipatia tanto de canalhas quanto de bonzinhos
viscerais.A santidade me entedia.Prefiro a mistura do humano.É mais
divertida e mais saudável, até.

O tempo nos remete à data imediatamente
posterior ao natal:o ano novo, em que todos esperam por dias melhores,
por esperanças, etc, etc.Porque toda felicidade humana reside no porvir,
no que virá.A satisfação plena é a morte, tanto no sentido metafórico
quanto real mesmo.Não quero criticar ninguém que espere por dias
melhores, até porque sobrevivemos de expectativa .Mas de fato gostaria
de ser mais surpreendido sobre o futuro, que tem se mostrado cada vez
mais previsível, às vezes tediosa, às vezes tragicamente previsível,
contrariando as expectativas romanescas.

Prefiro viver um dia depois do outro.Não acredito em
datas, em celebrações de momentos, até porque , em tese, todo momento é
sagrado e medíocre ao mesmo tempo.Não se resgata um tempo passado
celebrando-o no presente.As virtudes específicas de um tempo são em
geral alteradas pelas condições de um determinado presente, o que
acontece de maneira canhestra com o natal.O passado não existe a não ser
como lembrança , o futuro paira no campo das idealizações, e o presente
nos escapa, como me escapa este instante, este segundo em que
escrevo.De certa forma, o tempo não existe.Estamos condenados a
continuar,a acontinuar sendo.Sabe-se lá o que.

 

No mais, é isto.Presentes aqui e acolá, tapinhas nas costas e desejos
de boa sorte.E festas de calendários criados que agradam sobretudo aos
crédulos e a antropólogos ‘’sem preconceito’’.Alguns estudiosos dizem
que a data do nascimento de cristo foi mal calculada e que o mesmo teria
nascido por volta de seis de Janeiro.Deve ser verdade.O Menino não
nasceu em meio a tamanha balbúrdia.Discretamente, deve celebrar seu
aniversário em silêncio.

 

 

PS:Ficarei de recesso até começo de janeiro.Até lá me releiam as
velharias, entrem nos arquivos.Deve haver alguma coisa por lá que mereça
algum crédito.No mais, boas entradas, boas saídas, bons fins e começos,
et coetera e tal.Muitas felicidades, sorte e muitos Adrilles para
todos(nem tanto, nem tanto…).

Até.

  

2004-12-21 11:38:00

       
  

Somos todos culpados sim senhor

Todos as religiões estão encobertas pela couraça do
politicamente correto, exceto uma:o cristianismo.Experimente atacar o
judaísmo, o islamismo, o taoísmo ou qualquer outro ‘’ísmo’’ que aspire à
transcendência e verá um exército de bons moços desfiando um rosário de
clichês surradíssimos em defesa das liberdades de expressão em cima de
sua cabeça.Mas ataque o cristianismo e ganhará os aplausos de uma turba
de pseudo intelectuais lhe cobrindo de glórias e de razão.

A moda intelectual é esnobar o cristianismo.Uma
espécie de cruzada às avessas.Tudo que é cristão ,segundo esta premissa,
é conservador, arcaico, ‘’careta’’.Chegou-se ao despropósito de
defenestrar o filme de Mel Gibson(’’passion’’) por ter mostrado que
judeus pediram a morte de Jesus Cristo, ou seja, acusaram o filme de ser
fiel aos evangelhos(!?).A turba enfurecida dos pseudo intelectuais
politicamente corretos quer o sangue daqueles que ousarem defender o
tal ‘’nome do senhor’’.Dia destes , uma conhecida quase teve um ataque
de apoplexia se dizendo furiosa com esta tal de ‘’culpa cristã’’.

Longe de mim querer fazer a apologia do cristianismo
ou de qualquer outra religião.Acredito que todas as religiões sejam, em
essência, um engodo mesmo.Mas, em certa medida, um engodo necessário à
sobrevivência, principalmente no que se refere às massas, que
desconhecem o valor da ética desprovida de qualquer simbolismo
religioso.E o cristianismo, tão achincalhado, contribuiu sim com avanços
enormes para a formação ética das civilizações.

O ponto mais atacado dos princípios cristãos é a
culpa.Pois bem, acredito que o sentido de culpa no
cristianismo seja sua virtude mais preciosa.A culpa cristã parte do
princípio elementar de que somos todos canalhas sórdidos e
mesquinhos.Somos o contrário do ‘’bom selvagem’’ , que nascia
basicamente bom e virtuoso.Que nada.Somos invejosos, preconceituosos,
homicidas em potencial.Desejamos , a todo instante, darmos uma rasteira
em nosso ‘’próximo’’.O grande achado da culpa cristã foi o de ter nos
tornado pecadores originais,nos ter mostrado o óbvio, que
somos pérfidos instintivos, que sem um freio ético ou metafísico,
saímos por aí matando e roubando ao bel-prazer.

A culpa cristã é a mãe da moral ocidental como a
conhecemos hoje;refreia os instintos animalescos do ser humano, nos
coloca em nossos devidos lugares, ou seja, no lugar de uma ínfima e
insignificante presença no universo.Somos pó mesmo, poeira metida a
besta.A constatação é simples e os exemplos abundam:Não fosse a culpa
cristã, saquearíamos os ricos, mataríamos os canalhas(os mais evidentes,
digo), estupraríamos as mulheres mais desejáveis, roubaríamos a mulher
deliciosa do nosso melhor amigo.Se não fazemos tudo isto, é por um
sentimento básico e instintivo de culpa, que é originariamente
cristão.Sem o cristianismo, ainda estaríamos na era da pedra lascada, em
que o tacape era o único discurso que valia.

E daí se, como dizia Nietzsche, cristianismo é platonismo para a
plebe?Funcionando, tudo bem.Um pouco de Sócrates e Platão, ainda que
mastigado para o populacho, não faz mal à ninguém.Evidente que há
excessos aqui e acolá, principalmente no que diz respeito à sexualidade
humana e que a Igreja, com seus vícios-morais, sexuais, éticos-, não é
exatamente um modelo de vida cristã.Mas , como dizia uma personagem de
Billy Wilder, nobody is perfect.E também como diria um bom cristão, é
preciso separar o joio do trigo.Não se joga uma tradição inteira fora,
por algumas maçãs podres.Mesmo que, às vezes, as podres sejam a maioria,
o que acontece quase sempre.Ou sempre mesmo.

  

2004-12-17 21:29:00

       
  

Carnaval atemporal

 

Matizes e tons variados que revestem um caráter

qual tecido breve, palimpsesto sem fundo,

transmutado em superfícies

permeado por ruídos, sabores, ventos

e sorrisos fáceis

 

A fantasia espalhafatosa cola-se aos membros

tão rápido afinam-se as próprias entranhas  

ao baticum de sons e valores ligeiros

 

O rosto molda-se lânguido e viçoso

ao prazer amorfo do  prestimoso gozo do prazer imediato

das conclusões póstumas

 

(Ah, doce aroma destes perfumes ocos que inebriam os sentidos

e fazem sonhar com um cheiro estéril que nos é alheio

mas que se moldam à  pele  por osmose consentida)

 

Na ânsia de se mostrar

Pierrot indeterminado se ausenta de si

e se encontra na primeira aparência palatável,

na primeira seda, na primeira maquiagem,

 

no primeiro corpo que sorve o desejo instintivo

de tornar-se acessível à sua miragem

e aos outros que por fim completam a fantasia.

 

  

2004-12-13 21:53:00

       
  

O pseudo amor ao pseudo corpo

Somos basicamente narcisistas.Todos.A civilização
nos ensina , aos pouquinhos( para não nos chocarmos) que o outro
existe.E que devemos amar o outro, o que já é , de início, uma
dificuldade.Depois nos ensinam que temos que amar o outro como a nós
mesmos, o que já é quase impossível.Alguns poucos aprendem e sofrem os
custos de sua abnegação.A maioria dá um jeitinho.

Um destes jeitinhos chama-se patriotismo.Amor na verdade é
desprendimento do próprio ego.Patriotismo é narcisimo projetado e
disfarçado de amor às suas cercanias, o que é redundantemente patético.O
egocentrismo latente de uma pessoa é tão forte que se projeta para além
dos limites do próprio corpo.Ama-se a si próprio, à sua casa, às suas
posses , à sua cidade, estado e , por fim, à sua pátria.O amor a algo
específico pressupõe uma escolha que diminui e às vezes exclui as
outras possibilidades.A única escolha amorosa possível e legítima é a
uma pessoa.Não se ama uma entidade abstrata como um país com costumes ,
culturas e hábitos diversos, que , por imposição, teve seus limites
demarcados.Amor à pátria nada mais é que narcisismo (mal) disfarçado.O
mesmo que torcer para um time.O amor à pátria pressupõe uma crença na
hegemonia de valores culturais que , na maioria das vezes, nem são os
seus.Ama-se a pátria como se ama a si próprio, ao seu corpo.Mas um corpo
fictício, e construído a dar entender que se ama o próximo.

Patriotismo e seu sucedâneo, o pérfido nacionalismo, são os pilares
do racismo, da intolerância, da guerra.Não é utópico dizer que somos um
só povo, porque em verdade o somos.Um povinho chinfrim, medíocre, uma
raça que não deu certo:a humana.Não deu certo justamente porque se
pretendeu tão megalômana que criou distinções entre si, de povos,
credos, etnias, e estabeleceu valores a cada um.Não quero aqui negar o
valor da competitividade, mas esta se dá exclusivamente no campo
individual, não no que diz respeito à culturas de povos ou países.O
processo cultural é competitivo, claro, mas os valores que se sobressaem
são sempre individuais, que se destacam no campo do pensamento e da
arte.O coletivo, por si só,apenas consegue articular grandes
organizações.Como o nazi-fascismo, por exemplo.

Amor à pátria é uma falácia.O que há é orgulho da pátria.Um orgulho
vazio e despropositado.E amor é o oposto de orgulho, nunca é demais
salientar.Mas este orgulho tende a acabar e a cair no ridículo, com os
efeitos da globalização, tanto os nefastos quanto os virtuosos.Soa quase
ridículo hoje em dia falar em costumes de um povo, dada a
descaracterização crescente do que se chamam ‘’nações’’ e a confluência
de culturas.A quebra dos limites culturais é hoje inexorável e tende a
se acirrar cada vez mais.Claro que há uma hegemonia econômica que impõe
um modelo acima de outros.Mas sempre foi assim.Como contraposição à
hegemonia da mesmice pasteurizada, volto aqui a falar no
indivíduo.Só se pode aproveitar esta mescla cultural através da escolha,
do bom senso.E povos que raciocinam em bloco jamais terão este poder de
percepção e escolha.Resta ao ser humano, individualmente, separar o
joio do trigo desta balbúrdia globalizante.

Para começar, nada mais saudável que parar de olhar para nosso umbigo
inexistente de nosso corpo irreal, ou seja, nossa pátria, e abrirmos os
olhos para o que pode até nos parecer estranho a princípio, mas que
porventura poderá ser aproveitado.E abandonarmos esta bobagem de
patriotismo, que é tão ridículo como masturbar-se pensando em si
mesmo.Sim, sim, caríssimos,patriotismo é tara.E das mais esquisitas.

  

2004-12-09 21:34:00

       
  

A inviabilidade da pureza

Vendo Tom Jobim em um especial de dez anos de sua
morte.O humor lúdico, mas bem intencionado, quase pueril, que desperta
simpatia imediata pela absoluta falta de malícia ou segundas intenções.E
descubro:Tom Jobim foi uma utopia.A possibilidade de um Brasil
romântico,edênico, essencialmente bom , quase casto;como uma
projeção imaculada de uma nação que não se converteu nas promessas
de suas boas intenções.Jobim , em sua música e personalidade, era um
nicho de branco em meio a um lamaçal.Não sei quem disse que o Brasil
precisava merecer Tom Jobim e a bossa nova.E é a pura verdade.

Curioso como estes oásis de beatitude(mas sem castidade, claro)
aparecem de vez em quando, quando as coisas estão negras.A obra de
Mozart, por exemplo, é uma celebração da vida que remete a um
estado de transcendência que foge às mesquinharias terrenas,
baixas.Mesmo o sofrimento em Mozart(e também em Jobim) é sempre
representado de uma maneira plácida, como que um caminho de purificação
para algo maior.Mozart sofreu o diabo, enquanto Jobim teve uma vida mais
que agradável.Em Jobim, a obra é fruto direto do seu estado de humor e
vida.Já a música de Mozart é uma espécie de redenção da própria vida, de
fuga prazeirosa de sua realidade.

Não sei se ainda é possivel hoje uma arte que remeta a um estado de
graça como  os representados pela obra erudita de Mozart e a
popular de Jobim.Na literatura , nem pensar.Não se faz prosa nem poesia
com bons sentimentos sem cair no ridículo.Já a música permite uma
elevação a um estado de espírito que pode dar em uma calmaria beatífica,
ao mesmo tempo doce e elevada.Talvez por sua configuração incorpórea e
absolutamente abstrata, a música pode ainda se dar ao luxo de ser
romântica e pueril, sem ser piegas.

Mas mesmo na música,acredito que as boas intenções estejam
definhando.Não se consegue mais ser ingênuo sem fazer rir, sem provocar
um riso de escárnio e um esgar de sarcasmo em quem já sabe demais
(excessivamente, insuportavelmente demais) a respeito de certas coisas
inexoráveis da vida.

Talvez Jobim tenha sido o último de uma espécie mais que extinta.Sua
música linear, melodiosa, não mais se adapta à maneira como se vive,
como se pensa, como se ama.Infelizmente, não há mais pureza possível.A
dor e a dissecação da dor e de outros sentimentos andam à espreita da
pureza desejada.Só mesmo um talento imensurável para escapar incólume da
conspurcação indelével de quem vive e se emociona.

O tempo é, por exemplo, de Godard, um dissecador de emoções; de
Schoenberg, um dissecador da própria música, de Joyce, um dissecador das
palavras.O romantismo está, até que alguém o ressuscite,
inexoravelmente morto, sobrando a uns e outros trôpegos o papel de
tentar ressuscitá-lo.Os últimos todos que tentaram falharam feio.

Não se ama mais ao som de Tom Jobim, ou de Cole Porter, ou de
Gershwin, sem que se tenha uma melancólica sensação de nostalgia de um
tempo morto, em que as emoções eram mais castas e encantadoras em sua
pureza.

Infelizmente, uma vez rompido o hímen, não mais se recupera a virgindade.


  

2004-12-07 18:14:00

       
  

Poema do desamor

 

Enfim já não te amo
Já não encontro em ti
o fruto da busca inconstante de onde não me acho
Já não me encontro no desencontro de tuas vielas
já não me perco em teu corpo, procurando me desorientar
já não acho em nossa fuga o único sentido que me anula
e me reconduz à prazerosa descoberta do vazio
prenhe da tua pessoa

Não mais me desespero na angústia reconfortante
de desbravar os teus descaminhos
porque perdi o norte de te caminhar
já não me encontro em tuas encruzilhadas

Tua presença se perdeu no esperado desespero de nos achar
Nos perdendo, nós desatados, já não sinto nossa falta

Para mim tu já não és:
me encontrei pleno
na lírica mentira silenciosa
do meu desamor.