A vida se devora
o tempo se come
nos desperdícios da hora
no erro póstumo
do incalculável agora
A vida se devora
no amor
que morre e se renova
num outro desejo que se implora .
Um bicho come o outro
para sobreviver
e esquecer a morte de quem devora
O bicho vive na eterna permanência
da angústia do agora.
O bicho humano se canibaliza
na confusão da hora :
sua vida se alimenta de vida:
Você se doa comendo teu eu
e a sombra da indiferença
de um outro
come a tua aurora .
O seu amor se alimenta e se devora
no desejo que se reproduz
na vontade da eternização do agora.
Agora e sempre a vida implora
a cegueira das mãos que esculpem
o sentido de viver
a vontade de permanecer
que seus olhos e mãos devora .
Cleriston o inocente
No Brasil todo dia morre um inocente
No Brasil todo dia se condena um inocente
Cleriston Era um inocente .
Morreu por sua inocência .
Seu crime era não saber
por onde gritar sua esperança.
Seu crime era não saber
Por onde agir sua esperança.
Não eram inocentes os que assassinaram
Sua liberdade .
Não eram inocentes
Os que mataram
o lugar da esperança de sua liberdade
Sabiam seus assassinos
dizer da liberdade
da justiça ,
do governo do povo
que esmagavam com justas palavras .
Não são inocentes os que silenciam sua morte
comunicando a culpa
dos que podem dizer algo
dos que podem fazer algo
e nada dizem
e nada fazem
O lugar assassinado de cleriston
era sua procura desesperada
pela ação que traduziria
a palavra justa de sua libertação.
A ação exata da palavra
que libertaria seu povo
do lugar de injustiça
que o encarcerava .
cleriston nunca achou
a justa palavra
a justa ação.
Trancafiado
em sua busca por liberdade
Não soube dizer
dos assassinos que tão bem falaram
e tão bem mataram a sua liberdade por viver .
Cleriston Pereira da cunha
é hoje e sempre
um inocente .
uma viva palavra inexata
da liberdade de seu povo
Que teima em não morrer .
Interrupção
interrupção
Não há fim propriamente .
Há sempre interrupção .
Tudo se interrompe para voltar
ao que era renovado e distinto .
Uma criança é interrompida
pelo adulto que a molda
mas nunca se finda
a curiosidade infantil
pelo sentido da vida .
O adulto brinca saber
criando sentido
para o que desconhece
criando deuses à imagem e semelhança
da bondade que o embala
e sua ignorância arrefece .
A luz calorosa do dia
é interrompida pelo descanso
de uma calma noite fria .
Um beijo se interrompe
porque o prazer eterno
seria um fim de vida .
O beijo interrompido
abraça o início da promessa
de algo como o amor
que também se interrompe
como a luz que se apaga
pelo descanso de uma noite fria
esperando o nascer de um novo dia .
Uma vida se interrompe .
Amigos pais amores ideais
se vão para voltar outros –
ressuscitados na memória sem interrupção
ou na aprendizagem da traição
– traição da morte , da ação –
onde sempre voltam no perdão .
Um filho mesmo se vai para voltar
criança interrompida
para ser teu pai
a lhe cuidar
na interrupção de tua vida .
não há fim .
Tudo é provisória despedida.
Boca : modos de usar
Modos de usar a boca
Uma boca tem vários usos : alimentar o corpo , se comunicar , alimentar um outro pela fala , mastigar e entregar a palavra , traduzir ao som da fala o que se tenta compreender e engolir a ignorância a se devorar .
Uma boca serve para se crispar num ato comprimido de beijar e comprimir o amor infinito na rosto , no corpo ou em outra boca que se dá. A boca , num beijo ou palavra mastigar , devora o alimento , o sentido das coisas e a falta de sentido e beija a fome de amar.
Tem vários usos a boca : respirar quando o nariz entope , vomitar besteira quando a ignorância entope . Silenciar quando se escuta e apurar a palavra pela pausa atenta no olhar . Sorver , provar o sexo de quem se deseja para apurar a possibilidade do amor ao paladar .
Vários sentidos sem sentido explícito tem a boca no sorriso :
Uma boca sorri mesmo sem querer pela graça de não exatamente se compreender do que se ri mas se ri da falta de sentido a se acariciar , se ri da felicidade de quem o ama também amar , se ri da crueldade de não se compreender rindo da limitação de não saber amar . Um primeiro sorriso inocente de uma criança que não fala abre um sentido do universo ao se doar.
O anti casto
O anti Casto
Uma flor se cria na terra
na sujeira na lama
O excremento aduba o solo
em que floresce o alimento
O corpo suja a alma
que se enxerga em meio ao desejo
de se misturar à lama , ao excremento
de um apetite insaciável que jamais se esgota no toque .
Não se toca numa alma
sem se devorar na fome de um corpo .
Nao se fertililiza o solo para o amor
sem se tocar na matéria em decomposição sempre semi apodrecida do nosso desejo
por algo ou alguém que invade
a pureza de um olhar cego
para a alma tátil e invisível
Não há amor casto e puro
que não se fertilize na lama
de nossos corpos
que se devoram e se alimentam
de algo mais que jamais enxergamos
e tocamos
como um cego que aduba e sente
a ideia de uma flor em suas mãos
em meio a lama que o cerca
Salomé
Por um amor desesperado
perco a cabeça
que cortada da razão
transforma o amor
em ressentimento calculado .
Por um afeto doente decepado
encontro a cabeça perdida
onde de dentro da ilusão adoecida
brota a semente
da paixão amadurecida .
Perde – se por cegueira amorosa
a razão do amor que é se entregar
sem perder a cabeça .
Num pescoço onde não vejo meus olhos
sentirem e compreenderem os teus
uma cabeça não tem lugar .
Numa cabeça onde não vejo em você
a razão dos meus olhos
uma cabeça não tem lugar .
Refletida nos teus olhos
a razão de ser o lugar de minha cabeça
entrego voluntariamente
minha cabeça ao lugar
onde pertence :
na bandeja de prata do teu coração
onde pulsa meu sangue que você não vê
e que escorre por você .
Libertação
O bicho é escravo do instante
de sua fome de seu desejo
é preso à eternidade do momento .
O bicho é imortal porque não sabe que morre .
O homem é escravo da eternidade.
Porque sabe que morre e morre seu tempo .
Pesa o momento para além do tempo . Balança o passado , projeta o amanhã .
Planeja o jantar , o filho
a tática da conquista do primeiro beijo
o emprego o futuro glorioso
prevê a morte com crédito
para funerária
constrói a eternidade
para além de seu tempo
em cada cálculo de boa ação .
O tempo não se pensa
carcereiro suave de homens e bichos .
Nos passa e nos atravessa .
Na prisão provisória do tempo
o homem constrói sua liberdade:
constrói livre a prisão voluntária
a quem decide amar
se prende ao amigo ao filho à ideia
à carne
de quem decide se juntar .
Na prisão provisória do corpo
decide não desejar o que o destrói :
a rejeição a mágoa o ressentimento
que bate na parede
do desvio do olhar do outro
onde mora a cela da indiferença .
Livre , o homem busca no abraço
se prender a um outro corpo
mesmo que abrace o vazio
de sua doação.
Livre do tempo como um bicho
mas mais que um bicho
o homem se livra do desejo
que o aprisiona
abraçando a indiferença de quem ama
abraçando a ausência de quem ama
abraçando a ação de amar
assim atravessando a distância do tempo .
Moldes de verdades
O jornalista molda os fatos
à procura da verdade .
O militante molda a verdade
à construção de sua realidade.
O advogado ama a verdade do cliente
que direciona sua consciência.
Por racional demência
O terrorista molda o amor
à paixão pela morte
onde se ama nos olhos do assassinado
– se ama na vaidade do seu terror .
O amor toma a forma de quem ama :
ama a posse no cativeiro
o ciumento que enxerga a liberdade
com terror .
O homem molda a vida
à doença de sua consciência .
( algumas doenças nos salvam
De saúdes estéreis )
Uma pedra não se pensa :
Existe no molde estático
de sua passividade .
Um cão vive imortal
sem saber que vai morrer
preso sempre ao instante
de sua realidade .
Só o homem é escravo
da busca de sua verdade .
Um cão ama sua vontade de amar :
é sua única verdade .
O homem deve amar a liberdade
de no outro a si mesmo se encontrar .
O homem cria o Deus que o criou
para dentro de si se criar melhor .
O poeta cria a verdade
para melhorar a realidade .
O cão lambe os olhos do poeta
que vendo os olhos entregues do cão
não vê nenhuma ambiguidade .
O tédio é a eternidade
O tédio é a eternidade .
O fim que renasce é felicidade .
O momento feliz só é eternizado
porque acaba.
Ninguém suportaria
a exaustão de um beijo
de um orgasmo até o fim dos dias
Um dia descansa sua luz na treva
que acolhe o aconchego
de uma pequena morte.
O olhar doce do primeiro sorriso do filho
morre na ressureição do olhar grato
do filho adulto gerado pela educação
do pai que o abraça ao fim de sua jornada .
O tédio é a eternidade .
O fim que renasce é felicidade .
O fogo da paixão que fenece
se apaga e renasce no amor fraterno
na brasa que aquece
a cinza do tempo de um afeto extinto
que nunca se esquece .
O tédio é a eternidade .
O fim que renasce é felicidade .
Até Deus se fez homem
a fim de poder morrer
para poder viver no coração humano
na esperança e na ação
de todo dia ressuscitar.
O fim que sempre renasce
é o jogo de sempre voltar a amar .
Por que defendem os maus ?
O terrorist@ degol@ a criança .
O bom cego bem intencionado
degol@ a verdade
pela construção da ideologia
que decepa a realidade
por tatear a própria cegueira
que cria a maldade .
O ódio em nome do bem
degola o bem
que se faz cego de si.
Por ingenuidade ou inoportuna bondade
Há sempre quem defenda os maus.
A bondade não se constrói
por doçura ou ingenuidade
mas de severa percepção
Da realidade .
não há terror maior
do que daquele que por cegueira
ou doce credulidade
justifica com delicadeza
a mais óbvia e crua crueldade .
Por cega bondade
se cria a maldade .
Com enorme delicadeza
se estrangula a verdade .