O que não foi

O gesto negado
esquecido perdido
percorre um arco
até voltar sempre
à mão que o reteve
tocando a memória de um futuro
que não houve.
O gesto perdido acaricia
a bofetada de sua inação.
A palavra não dita é pronunciada
aos berros pelo eco que a acolhe
em seu silêncio.
O que se pensa
e não se articula
escorre sua inconclusão
na pergunta que se exclama
em definitivo.
O que se sente e não se pensa
escorre pelo corpo
que se exclama
em indefinido.
O que se pensa e sente
e não se doa
se devolve
qual dissolução.
O que não foi ainda é:
vivo em sua
sempre desacontecida morte
em eterna mortificante espera
por permanente interrogação
– ou desesperada ressurreição.

Precisão

A razão precisa da razão
para se ultrapassar
e se converter
em transcendente paixão.
A paixão precisa da razão
que a civiliza.
Civilização precisa de paixão
que a inaugura.
A justiça precisa da força
que a ampara
e da delicadeza
que a flutua.
A luz precisa da sombra
que a contraria, descansa
e revela.
A sombra precisa da luz,
por onde se ilumina
sua treva.
Amor se cria
na imprecisão do cálculo
que o justifica.
A justiça precisa de amor
que os cria.
Eu preciso de você
que não me reflete
que me subverte
e quase sempre
não me revela
pela sombra da luz
que nos ampara
e espera.

Não é potável a água pura

Não é potável a água pura.
Não é suficientemente pura
a água aparentemente pura que bebemos.
Minerais invisíveis sujam seu ideal de pureza
e da sua farsa
líquida e cristalina de pureza
nos saciamos.

Não se bebe a água pura.
Não consumível.
A pureza, na água, é conquistada
por uma química ação que altera
a sua natureza impura.

Também não são suficientemente puros
uma ideia, ideal
ou alma aparentemente puros
com que criamos e saciamos
nossa sede fabricada de pureza.

Toda pureza é também nefasta:
água límpida que convida
a misturas insuspeitas
pelo seu puro ideal.

A pureza, como um corpo
quer se sujar e se desinventar
como sede suja de outro elemento
de um outro corpo.
Ou alma impura.

Um copo de água pura
para se envenenar.
Uma sede de impureza
para se salvar.