Nada mais justo
que o que vai além da justiça
que o que doa para além do que lhe cabe
porque o que lhe cabe
nada mais é que o espaço tátil
do corpo que lhe encolhe.
Nada mais torpe
seria o cálculo da doação
que lucra com a intenção
da compaixão?
Seria a ação do mártir
falida pela sua intenção
de uma histórica comoção?
Um empréstimo consciente se faz
entre o usurário do afeto calculado
e o lucro de um bem imaginário:
um bem real se faz
mesmo pela intenção turva
que lhe traz.
O valor do lucro não jaz
na ressurreição da ação
que move o mártir
para além da sua torpe intenção.
Capitalize, investidor,
no erro mais acertado
do próximo ser humano
a ser viabilizado
ainda que o projeto inviável
seja você mesmo
a uma outra aparente falência
integrado.
Uma justiça não cabe
no centavo que a intriga
mas no lucro da doação
que a multiplica
para além da sua razão.
Quebra cabeças
Componho um quebra-cabeças
que forma uma imagem
de algo que falta.
Peça por peça,
vai surgindo o desenho
da que falta absolutamente.
Quase pronto, disperso os pedaços
e me encaixo novamente
no esboço frágil da falta
que destruo.
E recomeço.
Brinquedo
Começou como uma brincadeira.
Tão real a ponto de negar qualquer realidade
para além do brinquedo
com que se jogava.
O brinquedo se quebrou.
O embrulho de sua ausência
era agora o brinquedo que manuseava.
Desde então, ele brinca com a quebra.
Consertando a realidade
para fora de sua caixa.
Casamento
Primeiro veio você:
ideal embalado na projeção
do meu eu incalculado
que se apaixonou pela anulação
do reflexo de mim mesmo
em você fossilizado.
Depois surgiu você:
embrião que se inventou
à imagem e semelhança
de uma velha criança
gerada no futuro da lembrança.
Então desatamos nós:
siameses voluntariamente grudados
gerando o ventre de um cioso lar
onde habitávamos um quadrúpede bipolar
que se partiu em dois fetos atados.
Por fim, se foi você
enfim se fomos nós:
eu mesmo por mim abandonado
no que em você difuso me criei.
E a valsa soturna dancei
à merencória liberdade algemado.
Um dia revi você:
nada mais lembrava
do futuro do passado
em que desde agora
eu estaria para sempre atado.
Um dia acho você:
Não a tendo jamais encontrado
jamais serei por nós abandonado.
Comunicação
Quando boca não pronuncia
o que voz quer dizer.
Quando palavra não expressa
o que ultrapassa a voz
querer entender.
Quando ação não imprime
o que intenção ao certo não sabe
querer fazer
quando corpo não exprime
o desejo que lhe faz crescer.
Quando – sempre – desejo não revela
a invenção que lhe faz nascer.
Ou por desejar o que falta
à voz saber
por querer mais
do que ausência de palavra
do que é a ausência na palavra
o corpo
na voz inaudível de sua ação
se faz morrer.
E quando morte não pronuncia
o que vida quer dizer
ouve-se o silêncio
que na voz
se faz entender.
Justificativa poética para indiferença
Há na lágima não caída
no vivo túmulo
do pai ausente
a úmida culpa redimida
pelo tórrido desejo
na distante mulher presente.
Uma rosa que aflora
não colhe
o olho que a adora
sorve a vida que lhe brota
e a morte que ignora.
A rosa, como o rato
vivem eternamente
o momento que lhes brotam
indiferentes
ao sentimento que lhes colam.
Há, na indiferença
uma plenitude inexata:
a rosa murcha
à água que não a toca
o rato estrebucha
na ratoeira
que o esboça.
Todo homem sobrevive
à indiferença que o evoca:
rega, com lágrimas secas
seu cadáver lasso
devorando a ausência
na ratoeira que lhe brota.
E sente assim, efusivamente
o sentimento ausente
do pai ou da mulher
que não o toca.
Dramaturgia do que sempre houve por dizer
Respondo a vozes do passado.
Respondo ao silêncio
da minha voz futura
que ecoa a projeção do presente
que jamais passará.
Ecoa a mudez do grito
que ainda hoje espera
por palavra que não veio
que desespera
o anseio da palavra
que não há
que exaspera
a voz que não ouve
o apelo do sim
que aceita o limite da voz
que não cabe na expressão
que não cabe na intenção
de se fazer ouvir
o vento que tudo arrasta
ao sabor do tempo,
tempo que silencia
ao grito da resposta
que não houve
do silêncio que não ouve,
tempo que se arrasta
pela voz que o enxerga
e engole na palavra
que o come.
Recrio a palavra
para caber no tempo.
Recrio a cena
para sorver o vento
para calar o tempo
que me embala por dentro
em feroz cantiga
o grito
da palavra não dita
o eco
da palavra maldita.
Sonhado
Sonhei ou fui sonhado,
já não sei.
Já não me lembro de estar acordado
quando alguma pálpebra piscava
o adiamento do dia
na madrugada tardia
em que me esvaía
do sono abortado.
Sonhei- ou me sonharam
um corpo, alma, amor, cueca
ou ideologia de griffe
que acariciava meus quadris
roçava meu nariz
e me empurrava a dormir
no pesadelo acordado.
Já de pé
em acordo consumado
despertaram meu sono
e a um infinto prazer medonho
me acamaram – ao sonho atado.
Sonhei então que despertava
de um sonho jamais vivido
porém
em vigília por espera consumido
acordei
na alheia memória que o criava.
Sonho agora que cochilava
para acordar o sonho
que eu matava.
Instante
A hora emudeceu:
não sabe mais dizer
do tempo que se faz.
Por ora,
o tempo se suspendeu:
não sabe mais contar
a morte em que se liquefaz.
Nem mais se espera
por esperança
porque jaz aqui
um presente
que não se desfaz.
O tempo se esqueceu
de contar as horas
em que se desfaz.
Imortal o verme
que devora
o cadáver do tempo
que devora
a eternidade do momento
para além da razão humana
que reconta sempre o fim do tempo.
Mas em alguma hora
o tempo morre
tanto mais quanto viva em nós
o verme que nos aflora.
Verme eterno que nos vomita
a eternidade de uma aurora.
O verme não se perdeu:
não sabe dizer.
da morte que traz
Por ora
o tempo se perdeu:
não sabe mais dizer
da eternidade que traz.
Oração por uma nova ideologia de Gênero
Um Deus se faz homem
nascido de uma mulher.
Filho de si,
o Deus pai cria sua mãe
que gera sua vida.
Um homem se faz homem
pela criação
da natureza divina
que embala sua ação.
Uma mulher torna-se mulher
pela maternidade
que embala a divindade
de sua humana criação.
O humano semeia o ventre
que gera o corpo
de sua transformação
no mesmo Deus humano
à imagem e semelhança
do que se crê superação.
Homens e mulheres se fazem Deus
pela transformação
da morte do aborto
na entrega prazerosa
à dor do parto comungado
de uma eterna doação.
Sacrossanto incesto
de um mesmo corpo que se parte
em duas metades
de siameses
que se buscam, se negam
se enroscam, se espalham
– se fundem
no corpo invisível
da placenta que cobre
sua tátil salvação
Um Deus humano se faz Ser
quando enxerga
– e se cria seu irmão.