Caminhamos.
A passos cautelosos
avançamos no passado
para chegar a algum lugar ausente –
perto do presente.
Caminha-se:
porque o lugar de chegada
se esgota
no ideal fabricado
de sua imobilidade.
Caminha-se.
Porque nunca se chega.
Porque as chegadas se esgotam
pelos passos que as caminham.
Porque os lugares se mudam
pelos caminhantes que os movem.
Caminhamos
por entre passos passados
ora mortos
que traçam um futuro revisitado.
Caminhamos
mesmo parados
o agora escapado.
Parto
Abandonado o ventre,
o filho começa a caminhar
o aborto cotidiano das perdas:
aprende a perder o conforto uterino
para se doar enquanto vida
e promessa de amor pleno,
porque justamente desarticulado,
infenso ao conceito amoroso,
que sufoca e confunde o amar.
Aprende o filho a expressão da fome:
do leite, do afeto, do toque.
Aprende a mãe a saciar a fome
de sua parte apartada.
Aprendem juntos, mãe e filho:
amor se aprende, se perde e se ganha
na separação dos que se amam.
Abandonado o filho
ao ventre de sua liberdade.
a mãe reconhece no feto adulto
a fome do amor que nunca se aparta:
o trabalho de parto que nunca se acaba.
O que não foi
O gesto negado
esquecido perdido
percorre um arco
até voltar sempre
à mão que o reteve
tocando a memória de um futuro
que não houve.
O gesto perdido acaricia
a bofetada de sua inação.
A palavra não dita é pronunciada
aos berros pelo eco que a acolhe
em seu silêncio.
O que se pensa
e não se articula
escorre sua inconclusão
na pergunta que se exclama
em definitivo.
O que se sente e não se pensa
escorre pelo corpo
que se exclama
em indefinido.
O que se pensa e sente
e não se doa
se devolve
qual dissolução.
O que não foi ainda é:
vivo em sua
sempre desacontecida morte
em eterna mortificante espera
por permanente interrogação
– ou desesperada ressurreição.
Precisão
A razão precisa da razão
para se ultrapassar
e se converter
em transcendente paixão.
A paixão precisa da razão
que a civiliza.
Civilização precisa de paixão
que a inaugura.
A justiça precisa da força
que a ampara
e da delicadeza
que a flutua.
A luz precisa da sombra
que a contraria, descansa
e revela.
A sombra precisa da luz,
por onde se ilumina
sua treva.
Amor se cria
na imprecisão do cálculo
que o justifica.
A justiça precisa de amor
que os cria.
Eu preciso de você
que não me reflete
que me subverte
e quase sempre
não me revela
pela sombra da luz
que nos ampara
e espera.
Não é potável a água pura
Não é potável a água pura.
Não é suficientemente pura
a água aparentemente pura que bebemos.
Minerais invisíveis sujam seu ideal de pureza
e da sua farsa
líquida e cristalina de pureza
nos saciamos.
Não se bebe a água pura.
Não consumível.
A pureza, na água, é conquistada
por uma química ação que altera
a sua natureza impura.
Também não são suficientemente puros
uma ideia, ideal
ou alma aparentemente puros
com que criamos e saciamos
nossa sede fabricada de pureza.
Toda pureza é também nefasta:
água límpida que convida
a misturas insuspeitas
pelo seu puro ideal.
A pureza, como um corpo
quer se sujar e se desinventar
como sede suja de outro elemento
de um outro corpo.
Ou alma impura.
Um copo de água pura
para se envenenar.
Uma sede de impureza
para se salvar.
Por onde
Você foge.
Corre em direção à fuga,
à fuga se aprisiona,
escapando à escolha
de possíveis prisões móveis
que te obrigam à liberdade.
Foge do que quer e ama,
por saber em fuga de si
do que quer e ama.
Foge do que quer querer
e amar,
por não se saber.
Você foge.
Foge em direção à fuga,
que lhe escapa.
Forma
Eu te amo.
Talvez seja uma mentira.
Uma circunstância enganosa.
Mas me esforço em me esquecer
de toda verdade
que não tem a graça
de querer te amar.
Talvez este engano consciente
que engane
uma inconsciência não amorosa
seja a forma definitiva de amar.
Eu te amo:
plenamente
a cada talvez.
Conversar, contestar, rebelar, ordenar
Pela ordem
algo de racional desordem
que apele e conteste
os limites da razão.
Pela ordem,
a conservada desconfiança
de uma permanente revolução
que conserva o espírito
de sua ativa e insidiosa
inação.
Pela instituição,
seu racional e íntimo
oposto:
a sempre e necessária bárbara
reinauguração de humanidade,
este conceito primitivo
quase sempre em extinção,
primitivo humano lapidado
que gera civilização,
à espera ativa de algo mais,
alguma consciência ativamente ingênua
pela ânsia de redenção.
Por lei,a espera tácita
de sua quebra
quando a lei quebra
o ideal de sua ação.
Pela ordem, algo de racional desordem
que apele ao progresso
ou melhor, superação
de uma limitada razão.
Busca
Algo-
ideia, coisa, alguém-
tão perto do toque
que foge
que se esconde em sua sombra
que se desfia e se desmembra
em mil possibilidades de luz
que me devoram em trevas
que cegam minha busca
Eu-
que me vejo no espelho
e toco o aço do reflexo estéril
do que não sou
toco a pele inexata
do teu corpo
(ideia, coisa, alguém)
buscando desesperar
em busca de uma busca
que não se acha
Eu
que persigo algo – alguma busca
até perder o caminho
do regresso a mim mesmo
peço menos que algo possível
menos que o necessário
peço algum desencontro tátil
que descortine a volta
para a possibilidade
de mim mesmo.
Sei quem sou
Sei quem sou.
O desconhecido íntimo que sonho ser.
Sei do medo e do tédio que me salvam
do heroísmo que anularia minha queixa
de não me tornar o que quero.
Sei dos disfarces que uso que revelam minha nudez
que revelam o vazio das coisas que revestem
o que talvez nem queira
por saber de minha ignorância calculada.
Sei
de cada pensamento emudecido
de cada palavra desejadamente
solta ao léu
de cada ato atado pela ação
de meu sono consciente.
Sei também
por onde me ultrapassar
na ação de desvio dos atalhos
que me perdem de um outro.
Sei das mãos de um outro
– cego de si-
ciente de si-
que se conhece tão bem como eu,
sei destas nossas mãos cegas
que nos conduzem em comunhão
a um caminho de quem somos.
Sei da estranheza anônima
dos pedaços que compõem minha incompletude.
Sei da raiz
com que falo de mim
Sei da raiz
que fecunda em mim
através deste pedaços meus conhecidos
um eu
aberto à sua
-nossa –
multiplicação.
Sei quem sou.
Sei além do que sou.